Descrição de chapéu

Reconhecimento de Lina Bo Bardi no Brasil de Bolsonaro soa irônico

Em vez de prêmios e exposições, seria melhor se legado da arquiteta fosse expresso no planejamento urbano

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Oliver Basciano

Editor-chefe da revista ArtReview, colabora com veículos como os jornais britânicos Guardian e Telegraph

É irônico que num momento em que a reputação internacional do Brasil foi manchada por sua política e sua resposta à pandemia, uma figura tão humanitária quanto Lina Bo Bardi esteja sendo consolidada como ícone internacional.

Em 2018 um jornal britânico descreveu o Brasil como “a primeira grande potência soft”, um país cuja posição global era definida não pelo poderio militar ou econômico, mas por sua pujança cultural.

“Uma espécie de Canadá maior, mas com o Carnaval incluído”, na descrição feita pelo Financial Times. Embora essa era já tenha ficado para trás, o Brasil de Lina Bo Bardi talvez traga alguma exoneração no palco internacional.

Esta semana a arquiteta recebe da Bienal de Arquitetura de Veneza um Leão de Ouro póstumo pelo conjunto de sua obra. Trata-se de uma das maiores honras que pode ser dada a um arquiteto.

Essa canonização é apenas o mais recente em uma longa linha de reconhecimentos internacionais dados à brasileira nascida na Itália.

Uma retrospectiva de seu trabalho aberta em Londres em 2012 ajudou em muito a cimentar seu reconhecimento mundial. A mostra percorreu a Europa e América do Norte por cinco anos até terminar em casa no Sesc Pompeia, o centro cultural projetado por Bo Bardi na década de 1980.

A Casa de Vidro, a residência transparente que Bo Bardi construiu para ela e seu marido, o curador Pietro Maria Bardi, no meio de um jardim verdejante na zona sul de São Paulo, virou uma atração constante dos guias turísticos e recebe centenas de visitantes todos os anos; sua popularidade internacional foi reforçada pela publicidade dada a uma exposição promovida na residência pelo curador suíço Hans Ulrich Obrist em 2013.

Dois anos atrás, Isaac Julien prestou homenagem à arquiteta em uma videoinstalação em nove telas intitulada “The Ghost of Lina Bo Bardi”, filmada em várias de suas construções.

O artista britânico captou com a câmera o contraste marcante entre tinta vermelha e concreto cinza no subsolo do Masp e a floresta de pinturas reluzindo em seus cavaletes de vidro no andar superior do museu.

Em enormes telas sem apoio, Julien registrou com maestria a monumentalidade do Sesc Pompeia e a intimidade da escada helicoidal do Museu de Arte Moderna de Bo Bardi em sua tão amada Bahia.

Jane Hall faz parte da Assemble, a firma de arquitetura britânica que recebeu o prêmio Turner em 2015. Ela também participou do “Lina Bo Bardi Fellowship”, programa administrado pelo Conselho Britânico para fortalecer os laços entre Reino Unido e Brasil, financiando viagens de arquitetos britânicos para estudar o trabalho da arquiteta brasileira.

“Acho que a ressurgência do interesse [em Lina Bo Bardi] vem de arquitetos mais jovens. Arquitetos na casa dos 20 ou 30 anos andam se familiarizando novamente com o trabalho dela", diz Hall. "Desde 2010 o espaço público virou uma questão de importância enorme, e por conta disso as pessoas estão começando a olhar de novo para lugares como o Sesc Pompeia e o Masp.”

É uma visão com a qual concorda a urbanista paulista Laura Sobral, do coletivo A Cidade Precisa de Você.

“Ela enxergava as pessoas como parte da cidade e pensava que o papel do arquiteto era criar um diálogo com o público. O arquiteto não se limita a intervir em um espaço vazio. Ela tinha essa cultura embutida em seu trabalho, e desde então Lina virou uma parte muito importante de nossa prática. Parece evidente agora, mas na época foi radical.”

Nos últimos seis anos A Cidade Precisa de Você promoveu uma série de atividades públicas que vão desde descobrir como as pessoas usam um terreno baldio em São Remo, na zona oeste de São Paulo, para aproveitá-lo melhor para a população, até desenvolver um jogo que as pessoas podem jogar na rua com segurança ao mesmo tempo em que conservam a distância social necessária para barrar a propagação da Covid.

Lina Bo Bardi não estava interessada em cultivar um estilo particular que fosse sua marca registrada nem em emular os grandes gestos esculturais de pares como Oscar Niemeyer, o outro grande nome do design brasileiro.

Ela compartilhava a sensibilidade progressista de Niemeyer, mas seu trabalho seguia uma abordagem muito mais pragmática. Bo Bardi buscava engajar-se com estruturas já existentes e apropriar-se da linguagem do design vernáculo, algo pelo qual ficaria famosa. “A ideia da imperfeição é uma parte importantíssima de seu trabalho”, diz Hall.

“As coisas não eram acabadas, eram experimentadas sem desenhos, tudo parecia um pouco confuso. A mitologia, pelo menos, é de uma arquitetura criada por tentativa e erro, em que as coisas eram testadas, demonstrava-se que algo diferente era possível e depois se estudava como torná-lo permanente mais tarde.”

Onde estilos anteriores de arquitetura modernista exibiam elegância escultural, o reboco branco usado por Niemeyer, por exemplo, escondendo como seus edifícios eram feitos, o brutalismo de Lina Bo Bardi parecia capaz de sobreviver à desordem do uso cotidiano.

Enquanto a fuligem preta da poluição da cidade mancha o domo branco do Auditório Ibirapuera, criado por Niemeyer, que hoje precisa desesperadamente de uma renovação de custo estimado em R$ 500 mil, o Sesc Pompeia, mesmo com seu apoio financeiro mais generoso, parece ter envelhecido muito pouco.

Os assentos no Teatro Oficina criado por Bo Bardi são duros, mas não deterioram nunca.

“Ela prestava atenção a como as pessoas produziam seu próprio território”, concorda o arquiteto e acadêmico paulista Marcos Rosa.

“Podemos aprender com sua abordagem ao design vernáculo. Ela não o considerava apenas em termos de pobreza, mas avaliava como funcionavam essas estruturas do cotidiano, que tipo de criatividade estava operando ali. Seu legado consiste em mostrar a arquitetura não como um recipiente para a vida, mas como ferramenta que permite que a vida floresça.”

Quando Bo Bardi chegou ao local da antiga fábrica no bairro da Pompeia, encarregada pelo Sesc de criar um novo centro cultural para a cidade, descobriu que o lugar já estava sendo usado por vários times de futebol locais, que moradores da região vinham fazer churrasco ali nos fins de semana e grupos de dança se reuniam ali semanalmente.

Inspirada por essa utilização improvisada do local, Bardi disse à sua equipe: “O que queremos é precisamente manter e ampliar o que encontramos aqui. Nada mais.”

Na realidade ela rejeitava por completo o termo “cultura”, considerando que afastaria o público que ela queria que utilizasse suas estruturas. “’Cultural’ é pesado demais”, disse Bo Bardi. “Pode levar as pessoas a pensarem que devem realizar atividades culturais por decreto. E isso pode levar à inibição ou ao embotamento traumatizado.”

Ela procurou em vez disso construir um local para o lazer, que facilitasse quaisquer atividades que os visitantes quisessem, fossem banhos de sol ou concertos de jazz.

Essa abordagem democrática se manifesta em seu projeto do Masp, erguido sobre colunas para preservar a vista do centro da cidade.

A genialidade de Lina Bo Bardi pode ser vista não apenas na estrutura formal da construção ou no modo como ela criou galerias repletas de luz para as obras de arte que abrigam. Ela se manifesta também a cada vez que um encontro é marcado debaixo do vão ou que pessoas se reúnem ali para abrigar-se de um temporal.

A arquitetura, disse a arquiteta, não é criação de um único designer autor —ela é inventada novamente a cada vez que alguém “sobe uma escada, se apoia em um parapeito, levanta a cabeça para olhar, que ela ou fecha uma porta ou se levanta.”

Essa filosofia é explicitada no Oficina, onde o projeto de Bo Bardi torna a plateia tão importante para o drama quanto os atores. Os corpos dos espectadores atuam no espaço tanto qualquer atuação teatral.

Mas há uma ironia no fato de a obra de Bo Bardi estar sendo venerada internacionalmente agora, vista como emblema do Brasil, ao lado do futebol e das praias. Embora o público sempre tenha abraçado sua arquitetura, o mesmo não aconteceu com quem estava no poder. “O trabalho dela foi uma provocação contra as autoridades”, diz Sobral.

“Ela precisava convencer as pessoas de seus designs. Nunca houve dentro do planejamento a cultura de dar espaço à população, nem na época nem agora. Durante a ditadura as pessoas sequer podiam se reunir em espaços públicos, na rua. Sair em público ainda é um ato de resistência. E isso se vê na atitude da polícia, que ainda aborda grupos de adolescentes e os assedia se estiverem juntos na rua.”

Embora nenhuma das criações da arquiteta esteja correndo risco, com os planos grandiosos de privatização do governador paulista João Doria, muitos outros espaços que o público fez seus, como o estádio do Pacaembu, o parque Ibirapuera e o Mercado Municipal, ou já foram vendidos a investidores privados, com toda a gentrificação que acompanha esse processo na surdina, ou sua privatização já foi aventada.

Em um vídeo promocional de 2017 voltado a investidores do Oriente Médio, um narrador falando inglês com sotaque americano promove São Paulo como uma “cidade do mundo”, o lugar que concentra 50% dos bilionários brasileiros.

A empresa por trás da reforma do Pacaembu recentemente recebeu permissão de substituir os assentos mais baratos no estádio com uma área de hospitalidade, uma iniciativa que enfrenta oposição acirrada dos torcedores. Uma galeria comercial de arte e uma feira de arte também fazem parte dos planos para o complexo.

Esse tipo de planejamento de cima para baixo, com seu enfoque elitista e monetarizado à cultura, é a antítese de tudo que Lina Bo Bardi defendia.

Em vez de prêmios e exposições, seria melhor se o legado da arquiteta fosse expresso no planejamento urbano e nas políticas municipais.

Pode ser uma proposta utópica, mas é uma que muitos arquitetos agora argumentam que está ganhando urgência maior, à medida que a pandemia transforma fundamentalmente como usamos as cidades e vivemos nelas, concentrando as atenções sobre a importância de priorizar iniciativas locais em vez de tendências globais.

“Já faz tempo demais que enfocamos apenas as tradições de design vindas do norte global”, diz Rosa, o arquiteto.

Lina Bo Bardi, pelo contrário, “nos ensinou que precisamos reconhecer como as pessoas indígenas produzem seu espaço, ou o espaço produzido pelas pessoas escravizadas, ou ainda o uso do espaço feito por práticas religiosas como o candomblé.”

“Quando você está dentro de uma das construções de Lina, o ambiente é humano”, diz Sobral. “Você sente que faz parte dali. Isso é algo incrível.”

Enquanto os políticos promovem a “cidade do mundo”, Lina Bo Bardi apelidou o Sesc Pompeia de sua “Cidadela da Liberdade”. É esse legado que não pode ser perdido no meio do hype em torno de sua obra. O abraço brasileiro de Lina Bo Bardi como ícone não pode ser apenas para inglês ver.

Tradução de Clara Allain

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