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Salman Rushdie evoca 'Dom Quixote' nos EUA da era Donald Trump

Autor de 'Versos Satânicos' usa clássico de Cervantes para narrar suas impressões do país onde vive há mais de 20 anos

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Quichotte

  • Preço R$ 89,90 (520 págs.)
  • Autoria Salman Rushdie
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Jorio Dauster

Logo no início de “Quichotte”, vemos que o anglo-indiano Salman Rushdie se divertiu ao escrever seu novo romance. Já o leitor talvez se aborreça um pouco com as tentativas de emular a narrativa irônica de Miguel de Cervantes, de identificar as referências e comparações e de entrar no universo proposto pelo autor de “Versos Satânicos”.

É certo que a novela de Rushdie não é mera atualização do “Dom Quixote”, de 1605.

A imaginação do escritor navegou pelo universo dessa obra, mas também tomou como referência outros cânones da literatura, como o “Cândido”, de Voltaire, e o Pinóquio, de Carlo Collodi.

Deles vieram o impulso para o ritmo aventuresco da narrativa. E também os elementos para a construção de personagens, a inocência dos que vêm de outra realidade.

Dom Quixote retratado por Candido Portinari na obra 'O Cavaleiro da Triste Figura' - Reprodução

Aí entra uma exploração sobre a inocência humana, a força do engano e da ilusão. Além da reflexão de como o chamado “amor romântico” mudou muito desde o século 17.

O livro é finalista do Man Booker Prize e está na lista de best-sellers do New York Times. Em entrevista, Rushdie contou que sua ideia inicial era escrever não ficção.

Era algo que seria uma viagem sua pelos Estados Unidos —onde está radicado há mais de 20 anos—, descrevendo seu espanto ou surpresa frente a características da cultura americana que ainda o surpreendem. Mas que, no final, não quis se poupar o desafio de usar a imaginação. Daí que o livro virou uma ficção.

A trama acompanha um imigrante indiano idoso, vendedor de remédios, que é muito influenciado por programas ruins de televisão. Essencialmente, por reality shows.

Se, no “Quixote” original, o protagonista enlouquece com as novelas de cavalaria, o atual fica perturbado por assistir a muita TV de má qualidade.

Se, no “Quixote” original, o amor platônico por uma mulher que não se vê, Dulcineia de Toboso, é apresentado como algo romântico, a obsessão que o personagem atual tem por uma personalidade da TV, de nome Salma R, vira algo doentio. Salma R é uma espécie de Oprah Winfrey.

O platonismo do amor de nosso personagem acaba se parecendo às ações de um “stalker” nos dias de hoje.

O escritor anglo-indiano Salman Rushdie - Joel Saget - 10.set.2018/AFP

Ao perder o emprego, sai de viagem, com Sancho, não o fiel escudeiro que conhecemos, mas supostamente um filho.

A partir de certo momento, obviamente, também descobrimos que ambos estão em um livro que está sendo escrito por um autor de livros de espionagens, Sam DuChamp.

Uma história dentro da outra, como a do Quixote original. A essa altura, ou o leitor já comprou a brincadeira e está se divertindo com ela, ou abandonou o livro por tédio às referências e às “sacadas”.

Ainda assim, o que mais atrai na obra são as reflexões que o livro traz sobre o universo da cultura pop americana, o lugar da literatura, os anos de Donald Trump, embora seu nome não seja nunca revelado, a crise dos opioides, o racismo, as armas, a obsessão com a fama, e as diferenças que há entre Nova York, onde o escritor vive, e o resto do país, cuja descoberta e exploração ele revela por meio da trama da obra.

La Mancha é muito diferente dos Estados Unidos, e muito mais dos Estados Unidos de Trump. Mas o livro se destaca ao demonstrar que os recursos literários para interpretar uma realidade são atemporais. E nisso reside o melhor da obra.

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