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Artes Cênicas

'Terra em Trânsito' não consegue ir a fundo no real mediado pela tela

Versão online de peça de Gerald Thomas de 2006 não se realiza nem como teatro, nem como cinema

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Terra em Trânsito

  • Quando Transmissão ao vivo aos sábados e domingos, às 20h, até 25/5. Gravação disponível até 31/5
  • Onde Canal do Youtube Terra em Trânsito
  • Preço Grátis
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Fabiana Gugli
  • Direção Gerald Thomas
  • Link: https://www.youtube.com/channel/UCZzPxjTozlmWfC9EAUEcong
  • Duração 40 min.

Não é difícil entender os motivos da escolha de Gerald Thomas por retomar o espetáculo “Terra em Trânsito” em sua incursão pelo teatro virtual. O isolamento imposto pela pandemia ecoa aquele vivido pela atriz fechada em seu camarim, dialogando com um cisne, na peça que estreou originalmente há 15 anos. Também as referências ao conservadorismo e a uma sociedade em desordem da montagem original têm forte conexão com o ambiente político e social de agora.

Na peça, uma atriz viciada em ansiolíticos —ou cocaína, na versão de 2006— conversa com um cisne enquanto o alimenta. Nesse diálogo com cara de monólogo, ela empilha delírios, erudição vazia e insights filosóficos patéticos diante do espelho enquanto aguarda os três sinais do teatro para o início de sua atuação numa ópera de Wagner.

A atriz vai aos poucos se descobrindo esquecida ali, talvez morta, como o poeta Paulo Martins de “Terra em Transe”, que começa o filme morrendo e cuja referência é explicitada no título da peça. A intérprete parece ser uma imagem altamente irônica do ambiente artístico das artes cênicas, embora também exista um tipo de simpatia por sua resiliência torta em tentar seguir em frente.

Dá o que pensar Gerald Thomas ter escolhido justamente essa montagem para enveredar pelo teatro online. Ele, que decretou a morte do teatro tantas vezes e que escreveu um manifesto em 2009 abandonando os palcos, participa dessa tentativa de sobrevida virtual da arte milenar como que dizendo que isso tudo já vive um tipo de isolamento ridículo muito antes de a atividade ser interditada pela pandemia.

Mas, assim como no tropicalismo evocado na peça, há certa fascinação por esse ambiente ruinoso. No teatro de Thomas, o tom apocalíptico e iconoclasta convive com a vontade de emplacar belas obras de arte sobre a destruição, como em “Dilúvio” sua última peça nos palcos brasileiros, de 2017.

Só que tal jogo paradoxal não funciona bem no modo virtual deste “Terra em Trânsito”. Como tantas outras experiências do tipo durante a pandemia, o espetáculo tenta acontecer sem o ambiente físico e coletivo do teatro presencial, mas não consegue ir a fundo nessa nova realidade mediada pela tela.

A peça se torna um tipo de criação audiovisual, só que sem o trabalho técnico-criativo da montagem ou o gesto artístico da filmagem. Em “Terra em Trânsito”, o enquadramento da câmera, sempre fixa, parece estar à serviço da atuação e nunca em interlocução dinâmica com a cena, como no cinema.

Se não se realiza como cinema, a versão online de “Terra em Trânsito” também funciona pouco como teatro. O ótimo trabalho da atriz Fabiana Gugli, cujo desempenho há 15 anos rendeu a ela uma indicação ao prêmio Shell, agora não possui o contrapeso da encenação de Gerald Thomas, que fez carreira mundial como artista da cena, articulando a tridimensionalidade do palco com a iluminação, sonoridades, interrupções imprevisíveis et cetera.

Na janela do YouTube não há espaço para esse tipo de encenação e, sem ela, sobra uma imagem estática, desajustada, um triste instantâneo de algo que não pode mais existir, mas que não se consegue deixar para trás. Como a atriz da peça, esquecida em seu camarim.

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