Descrição de chapéu The New York Times

Conheça o músico brasileiro que teve a morte anunciada por gravadora, mas está vivo

'Sumi devido ao tempo enorme passado entre a gravação e o lançamento dos álbuns', explica cantor

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Marcus J. Moore
The New York Times

Em 2016, o selo britânico Far Out Recordings relançou o álbum de estreia de José Mauro, misterioso cantor e violonista brasileiro cujo LP de 1970 “Obnoxious” virou um clássico cult no Brasil e entre os famosos caçadores de álbuns de vinil raros Madlib, Floating Points e Gilles Peterson.

Os materiais de divulgação do álbum destacavam que as condições da morte de José Mauro, que se supunha ter ocorrido na década de 1970, eram inexplicadas. Ele podia ter morrido num acidente de carro ou ter sido assassinado pelo regime militar por criar supostas canções de protesto.

Só havia um porém –José Mauro continua vivo.

 O cantor José Mauro, que foi considerado morto pela gravadora, mas está vivo
O cantor José Mauro, que foi considerado morto pela gravadora, mas está vivo - Reprodução

Ele nunca se desentendeu com a ditadura militar brasileira nem criou qualquer coisa que se aproximasse de constituir música de cunho político, apesar de sua arte radiante ser vista como válvula de escape. “Eu era estudante, um estudante de música que se dedicava a compor. Nada mais”, escreveu José Mauro, 72 anos, em email escrito com a ajuda de um tradutor. “O meu negócio era a natureza. A natureza e a beleza.”

A Far Out, especializada em música brasileira, voltou sua atenção novamente ao catálogo de José Mauro, relançando seu segundo álbum (o único além de “Obnoxious”), “A Viagem das Horas”. É uma fusão magistral de folk psicodélico e soul orquestral que, apesar de ter sido gravada juntamente com “Obnoxious”, só foi lançada originalmente seis anos após o primeiro disco.

Enquanto “Obnoxious” trouxe números de bossa nova mais evidente, dominada pelo violão, o segundo LP representou um despertar musical e espiritual de José Mauro e sua parceira letrista, Ana Maria Bahiana, escritora e jornalista hoje residente em Los Angeles. A chegada desse LP obrigou a Far Out e outros que davam José Mauro como morto a reconhecer e encarar seu erro.

“Nós aqui no selo acreditávamos genuinamente que José Mauro havia morrido. A verdade é só essa, na realidade”, escreveu em email o fundador da Far Out, Joe Davis. “Não havia razão para pensarmos outra coisa na época. Assim que soubemos que ele estava vivo, paramos tudo até conseguir falar com ele.” Davis disse que a revelação explica o hiato de cinco anos entre o relançamento dos dois álbuns.

Da esquerda para a direita, Roberto Quartin, Ana Maria Bahiana e José Mauro - Reprodução

Ninguém sabe ao certo por que começaram a circular rumores sobre a morte de José Mauro. “Não imagino como isso possa ter começado”, escreveu o cantor. “Eu meio que sumi devido ao tempo enorme passado entre a gravação e o lançamento dos álbuns. Mas não havia motivo para pensar que eu tinha morrido!” Joe Davis disse que o selo soube da suposta morte de José Mauro em 1994, quando o antigo produtor do artista, Roberto Quartin, o informou de uma possível catástrofe envolvendo o cantor.

“Quartin disse que contaram a ele que José Mauro talvez tivesse tido um acidente grave de moto ou morrido, mas falou que não tinha 100% de certeza”, escreveu Davis. Como ninguém sabia do paradeiro de José Mauro, nem mesmo os músicos com quem ele gravava, “isso nos levou a acreditar que ele devia estar morto”, disse Davis. O próprio Roberto Quartin morreu em 2004.

Mas Ana Maria Bahiana sabia que não era verdade. “Andar de moto é a última coisa que ele faria, porque odiava velocidade”, ela disse em entrevista por telefone. “Ele dirigia o carro de seu pai a 20 quilômetros por hora.” Especularam que ele teria sido preso e torturado, “mas nada disso aconteceu”, ela disse. Bahiana entrou em contato com a Far Out depois do relançamento de “Obnoxious”.

Ela sabia que José Mauro estava vivo, mas não sabia onde. O selo acabou contatando o cantor por meio de seu sobrinho, David Butter, que ajudou a mediar o relançamento da música de seu tio e descobriu que José Mauro estava vivendo nos arredores do Rio de Janeiro, passando seus dias com leituras e papos com amigos.

A história de José Mauro começou num sítio em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio. Ele foi criado numa família musical; seu pai cantava e seu bisavô era regente numa cidade do interior. Aos seis anos de idade José Mauro começou a tocar sanfona. Nove anos mais tarde ganhou um violão, apesar de querer um piano. “Meu pai não teve condições de comprar um piano naquela época”, ele escreveu. Ele se apaixonou pelo violão e estudou piano na respeitada escola de música ProArte, no Rio.

Seus professores de violão incluíram os mestres brasileiros Baden Powell, Roberto Menescal e Wanda Sá, e ele aprendeu a compor com a eminente pianista Wilma Graça. Na ProArte José Mauro infundiu elementos clássicos ao seu som de violão, distanciando sua música de um estilo rústico discreto para conferir a ele um som mais robusto. Ele se apaixonou pela música e não voltou mais atrás.

“A música virou uma aliada, e eu gostava disso”, ele escreveu. “Para mim não havia alegria maior do que pegar o violão e compor com a intuição. A música me chegou como uma dádiva, um dom natural.”

José Mauro começou ouvindo cantores-compositores americanos (Bob Dylan, Jim Croce e James Taylor) e cantoras de jazz e blues (Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan).

Entre os músicos brasileiros, gostava especialmente do soul melódico feito por gente como Edu Lobo, Tom Jobim e Milton Nascimento. Essas influências variadas o ajudaram a forjar seu próprio som, que buscava promover a paz e a contemplação.

“Meu estilo é muito pessoal”, ele escreveu. “Sempre me senti um músico nato, senti que carrego canções dentro de mim. Estava disposto a dar o melhor de mim para o mundo sem abrir mão de meu estilo de compor.” Ele escrevia canções em seu quarto, olhando para a Mata Atlântica, onde observava bichos, borboletas e aves. “Quando estava em astral criativo, eu ligava o gravador e começava a compor.”

José Mauro impressionou Quartin, que quis ser seu produtor, tocando uma valsinha que acabara de compor no violão depois de um jantar na casa de um amigo em comum. Pouco depois disso foi apresentado a Ana Maria Bahiana por uma amiga dela e visitou sua futura colaboradora na casa dela em Ipanema. Os dois começaram a escrever centenas de canções que acabariam fazendo parte de “Obnoxius” e “A Viagem das Horas”.

O produtor musical Roberto Quartin, 58, em sua casa, no Rio de Janeiro, em 1999. Ele morreu em 2004.
O produtor musical Roberto Quartin, 58, em sua casa, no Rio de Janeiro, em 1999. Ele morreu em 2004. - Bel Pedrosa/Folhapress

“A gente se entendeu perfeitamente desde o primeiro momento”, disse Bahiana. “Eu amei a música dele. Achava fácil encontrar letras para as músicas dele.”

Roberto Quartin, produtor brasileiro que lançara cerca de 20 álbuns por seu selo Forma, escolheu as canções das quais gostou mais e pôs José Mauro e Bahiana no estúdio com Lindolfo Gaya, que fez os arranjos e regeu a orquestra. “Obnoxious” foi lançado com pouca fanfarra; Quartin perdeu interesse em lançar “A Viagem das Horas” e acabou vendendo o álbum.

“Sabe os selos que só soltam coisas tipo ‘As Melhores Canções dos Anos 40’, ‘Seus Jingles Favoritos’ ou coisas do gênero?”, disse Bahiana. “Quartin acabou vendendo o segundo álbum a uma empresas dessas, que basicamente acabou com ele. E aquilo, para nós, foi o fim da história.” Ela voltou para a faculdade e mergulhou em sua paixão pela escrita. José Mauro permaneceu no Rio, dando aulas de violão e compondo música para o teatro.

Ele disse que o hiato de seis anos entre um álbum e o outro acabou com sua vontade de compor mais canções. “Pareceram séculos”, escreveu. José Mauro não tem dúvida de que ele e Ana Maria Bahiana geraram músicas suficientes para lançar mais dois LPs.

Desanimado com a indústria, ele acabou optando por uma vida tranquila. Quando foi envelhecendo, teve que parar por completo de tocar violão, tendo recebido um diagnóstico de Parkinson’s em fase inicial. Agora suas mãos trêmulas não permitem mais dedilhar o instrumento. (“E, para complicar ainda mais, as pessoas me deram por morto”, escreveu.)

Mesmo tendo perdido sua faísca criativa, José Mauro não é dado a lamentar o que ficou para trás. O fato de sua música ainda soar tão vibrante hoje quanto quatro décadas atrás é o bastante para ele.

A mesma coisa se aplica a Ana Maria Bahiana, que curte a pureza da música. “É a alma dele falando”, ela disse. “Não há artifícios, não há nada tipo ‘vou compor tal coisa porque é a tendência agora’. É exatamente do jeito que compomos, o jeito como mostramos o espírito de José Mauro. O coração dele está ali.”

Tradução de Clara Allain

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