Descrição de chapéu
Livros

'Criança Viada' rompe tabus sobre infância, na contramão das fake news

Livro traz memórias pessoais do autor para abordar temas atrelados à sexualidade humana que são ignorados

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ideídes Guedes

Criança Viada

  • Preço R$ 39,90 (134 págs.); ebook R$ 8,91
  • Autor Ícaro Machado
  • Editora Editora Viseu

“Se você pudesse fazer uma ligação para você mesmo, quando criança, o que falaria?” Desde o começo do livro “Criança Viada”, o jornalista cearense Ícaro Machado busca convidar o leitor a se perguntar o que significa se descobrir gay desde criança, mesmo mesmo sem saber o que isso significa.

Ele pergunta ainda a dez adultos gays que transformações ocorreram na sociedade após três décadas acerca de um assunto que ainda é tabu.

A coletânea de crônicas nesta obra para adultos tem como referência uma página criada pelo jornalista Iran Giusti, no Tumblr, também chamada Criança Viada, ainda em 2013, em que adultos LGBTQIA+ compartilhavam fotos de uma infância que não se enquadrava na heteronormatividade.

foto de criança em ilustração
Ilustração de Juliana Saraiva com colagem de foto, quando criança, do jornalista cearense Ícaro Machado, em 'Criança Viada' - Reprodução

Quatro anos depois, o termo ganhou destaque nacional com a exposição “Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural, em Porto Alegre, onde a obra da artista Bia Leite, “Travesti Lambada e Deusa das Águas”, foi censurada. O mais recente caso aconteceu em Santa Catarina, com o cancelamento da live Roda Bixa, no mês passado.

No livro, as memórias relatadas pelos personagens explicam como a subjetivação de gênero é presente no simples ato de brincar. Observador, no primeiro relato, o autor mostra inquietação ao se perguntar se brincar de elástico é coisa de menina. A atividade era realizada de forma escondida dos pais.

Décadas depois, quando passeava pelas ruas de Aracati, cidade litorânea do Ceará, avistou quatro crianças brincando com o amado elástico que tanto trouxe alegria a ele durante a infância. Ao sentir que estava sendo visto, em desespero, o único menino da turma se sentou, fingindo que não participava da brincadeira. Sem hesitar, ele pediu para brincar também, causando, segundo o relato, felicidade àquela criança que percebia que não era o único menino que jogava aquilo.

Machado traz o medo do “ser descoberto”, consequência dos conceitos de certo e errado, normal e anormal, do ser homem e ser mulher, que são aprendidos pelas crianças, em outras crônicas do livro.

É o caso do menino que provava todos os vestidos da loja de aluguel de roupas da avó. Naquele castelo encantado, a liberdade criadora da criança despertava experimentações no ato de brincar, desenvolvendo sentimentos de pertencimento ao mundo que imaginava ser ideal. Ele era uma princesa.

Muitas das memórias compartilhadas ao longo do livro citam a escola como o espaço que divide o mundo em gêneros, ao impor atividades para meninos ou meninas. Os que jogavam futebol transmitiam virilidade e os que eram realocados em atividades artísticas recebiam insultos tanto das próprias crianças quanto de adultos que viam naquelas situações sinais para uma leitura LGBTfóbica.

Foi dentro da escola, na obra de Machado, que a criança descobriu a palavra “resistência”, mais uma vez sem saber o que aquilo significava. Talvez no grupo de dança, porque “dança é coisa de mulherzinha”; talvez nas diversas formas de evitar as aulas de educação física, porque “jogar bola era coisa de menino”.

Homossexual, gay, viado, viadinho, viadão, bicha, bichinha, bichona, Barbie, poc, pão com ovo, baitola, florzinha, boneca, frutinha, afetado. A artimanha do autor em citar os apelidos ouvidos durante a vida chama a atenção, seja pela lembrança ainda vivida no presente, seja pelas relações de poder que são produzidas e organizadas de diferentes formas, umas mais sutis, outras mais acentuadas.

A questão do abuso sexual não foi ignorada pelo autor ao rememorar a infância. A violência, conta, vinha das pessoas mais próximas. Do primo adulto que chamava para assistir ao filme no quarto. Do dono da bodega que desceu o short, após perguntar se a criança gostava de picolé. Do namorado da empregada da casa, que pedia para o menino ir dormir com eles. Do vizinho que trancou a porta do banheiro enquanto pedia para ser masturbado.

cartaz de evento com tarja preta escrita "suspenso"
Live 'Roda Bixa' é cancelada pela prefeitura de Itajaí - Reprodução/Instagram

O livro, assim como a obra de Bia Leite e a live do Roda Bixa, se encontram num momento da sociedade que normaliza ataques pelas redes sociais, cancelamento de eventos e censura, e mesmo com fake news que associa esse tipo de arte com um incentivo a pedofilia, zoofilia e zombaria de símbolos cristãos.

Machado finaliza sua obra mostrando que a infância de uma "criança viada" não é só dramaticidade. Há banho de chuva; performances da Xuxa; variedade de brinquedos; paixões platônicas; personagens de filmes que se tornaram importantes para a formação; e aceitação dos pais, além de coisas “indizíveis ainda”.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.