Descrição de chapéu
The New York Times Cinema

'Cruella' demoniza moda e reforça um dos clichês mais amados do cinema

Indústria serve como resumo do que existe de venal e moralmente corrupto no mundo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Vanessa Friedman
The New York Times

Há uma cena, lá pela metade de “Cruella”, a nova história de origem que a Disney está lançando sobre a vilã de “101 Dálmatas”, em que a Baronesa, uma fabulosa diva do estilo interpretada por Emma Thompson, está saboreando champanhe com sua nova subordinada, uma aspirante a estilista chamada Estella, interpretada por Emma Stone, e explicando a ela o que é preciso para o sucesso nos negócios.

“Você não pode se importar com qualquer outra pessoa”, diz a Baronesa, fazendo biquinho com seus lábios rubros e em seguida expondo seus dentes brancos e perfeitos.

“Todas as outras pessoas são obstáculos. Se você se preocupar com aquilo que um obstáculo sente ou quer, você morre. Se eu me incomodasse com qualquer pessoa, ou qualquer coisa, poderia ter morrido, como tantas mulheres brilhantes que guardaram seu gênio nas gavetas, escondido, e sua amargura no coração. Você tem talento para criar uma grife própria. Mas a grande questão é determinar se você tem o instinto matador necessário.”

E ela quer dizer “matador” literalmente, assim como Estella (mais tarde Cruella), que em resposta semicerra os olhos e diz “espero que sim”, deflagrando uma batalha que será travada até a última agulhada e cujo arsenal incluirá lindos vestidos, jaquetas punk de couro, incêndios e alfinetes.

Se atores exagerados são acusados de devorar o cenário, bem, as duas rivais devoram cetim (e mariposas fazem o mesmo, numa cena).

E assim segue em frente a demonização da indústria da moda, que serve como resumo do que existe de venal e moralmente corrupto no planeta. É um dos clichês mais amados, e cada vez mais inanes, de Hollywood.

Desde que existem filmes que tomam o setor de moda como cenário, aquele mundo vem sendo retratado como um charco dourado de caricaturas, chiliques e ocasional criminalidade, com um sistema de valores distorcido e muito distante do milharal da vida cotidiana —e pouco importa que o filme seja comédia dramática, sátira ou musical.

Considere o que Brosley Crowther descreveu como “a obstinada e mundana tropa das revistas de estilo”, ao resenhar “Cinderela em Paris”, de 1957, para o The New York Times. Ele disse, sobre o filme estrelado por Fred Astaire e Audrey Hepburn, que “não existe qualquer coisa de mais ilusório em nossa era que o dispendioso adorno das fêmeas”.

Ou pense em Diana Ross como uma estilista forçada a escolher entre a falência moral (representada pela moda) e o verdadeiro amor (o ativismo social) no filme “Mahogany”, de 1975.

Meryl Streep em 'O Diabo Veste Prada' - Instagram/merylstreep

Ou na coleção de narcisistas trapaceiros e vaidosos que são os estilistas e editores de “Prêt-à-Porter”, de 1994. Ou o estilista imbecil e o agente transformado em cérebro criminoso de “Zoolander”, em 2001. Ou a editora de revista famosamente autocrática interpretada por Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”, de 2006.

Isso se aplica até mesmo a “Trama Fantasma”, o muito elogiado estudo da dinâmica de poder num relacionamento que Paul Thomas Anderson dirigiu em 2017, com Daniel Day Lewis. O personagem central é um estilista da metade do século 20, vagamente semelhante a Balenciaga, cujo gênio justifica toda espécie de comportamento obsessivo e compulsivo, um filme que emprega a moda como metáfora para abuso.

Tendemos a encarar os banqueiros como os avatares do mal, na cultura pop, mas os estilistas são igualmente ubíquos. Se os primeiros são criticados por seu amor ao vil metal, os segundos são condenados por seu apego ao frívolo lamê. De qualquer forma, são vistos como falsos ídolos que precisam ser derrubados de seus pedestais e arrastados pela lama.

Um look nada bom

“A moda é um alvo fácil demais”, disse Valerie Steele, diretora do Museum at the Fashion Institute of Technology, que disse que seu interesse pelo setor surgiu em parte para compreender porque ele era tão “demonizado”. “Na experiência subjetiva das pessoas, a moda se combina a questões de prestígio e popularidade”, disse Steele, que traça as raízes dessas questões às escolas de segundo grau e à questão da aceitação social.

“Essas percepções são formadas realmente cedo”, ela disse. “E em seguida os estereótipos tais como vistos no cinema se sobrepõem às experiências concretas das pessoas e parecem ser verdade”.
Porque todo mundo já foi exposto à moda em algum nível, todos têm opiniões a respeito. E essas opiniões muitas vezes são coloridas pela irritação diante da ideia de ser instruído quanto ao que vestir.

“O cerne do problema é a ideia ridícula de que, se você não mudar aquilo que usa a cada seis meses, estará de alguma forma ‘excluído'”, disse Joanne Coles, antiga vice-presidente de conteúdo da Hearst Magazines e produtora executiva da série de TV “The Bold Type”.

É a ideia de que alguém, em algum lugar, considera que aquilo que a pessoa está vestindo não é suficientemente bom. Frequentemente, porque a moda foi por muito tempo um dos poucos setores em que mulheres podiam subir ao topo, os encarregados desses julgamentos eram mulheres.

E o poder delas era frequentemente visto com desconforto pelas pessoas que ficam de fora, precisamente porque elas eram mulheres trabalhadoras, que conquistaram o sucesso e tiveram de perder sua feminilidade ou se transformar em bruxas malvadas, ainda que com um guarda-roupa melhor.

“Onde encontramos as caricaturas sobre as mulheres mais poderosas e malévolas do planeta?”, pergunta Wendy Finerman, produtora de “O Diabo Veste Prada”, retoricamente. E ela oferece sua resposta –“na moda”.

Ou seja, se você precisa de um personagem poderoso e malévolo, a melhor maneira de convencer os espectadores de suas falhas é fazer dessa pessoa uma estilista ou editora de moda. Como a atual Cruella de Vil, que nem sempre foi editora de moda.

Desenhando um clichê

Em “101 Dalmatians”, o livro de Dodie Smith, lançado em 1956, Cruella era mulher de um rico comerciante de peles. No primeiro desenho animado da Disney, de 1961, ela foi retratada assim. Só quando Glenn Close a personificou na versão “live action” de 1996, Cruella se tornou estilista, a comandante da House of DeVil.

Glenn Close em '101 Dálmatas' - Divulgação

Mas “Cruella” conduz essa história a um novo extremo, deixando de lado as peles e adotando em lugar disso o mundo da moda mais amplo, dando a Cruella o sonho de ser estilista e pondo ainda mais coisas em jogo ao criar uma grande mentora e rival, a Baronesa, que dirige uma casa de alta-costura e circula em vestidos altamente estilizados, roubando ideias e disparando farpas.

O filme acrescenta bailes de gala da alta sociedade, desfiles de moda, lojas de roupa vintage, cenas na Liberty of London, máquinas de costura e a ideia de que é por meio da moda que Cruella é libertada para se tornar seu verdadeiro e malévolo eu.

É uma tremenda acusação

“Tematicamente, achei que seria uma abordagem interessante”, disse Craig Gillespie, o diretor do filme, que se disse atraído pela ideia de moda como forma de autoexpressão e de demarcar posições. Mesmo que a posição demarcada requeira destruir a estrutura que explorou alguém e recorrer a meios igualmente violentos.

E há os diálogos. “Lembro ter ouvido [o estilista] Michael Kors dizer que uma praia o inspirou tanto que trouxe 30 quilos de pedras em sua bagagem na viagem de volta”, disse Coles. “O agente da alfândega não conseguia acreditar.”

Ela acrescentou que quando Jason Wu publicou notas sobre uma coleção que descreviam estilos inspirados ao ver um garçom ralando trufas para guarnecer seu macarrão em Veneza, ela compreendeu por que muita gente podia considerar esse tipo de conversa difícil de engolir.

“Ele é um artista, e aquilo significa uma coisa para ele —uma cor ou movimento—, mas para qualquer pessoa normal, parece ridículo”, ela disse. “Muitas vezes não só os estilistas parecem pretensiosos, e suas roupas caras demais para comprar, como as pessoas se sentem espicaçadas pela exposição a coisas que não poderão ter.”

Finerman, a produtora de cinema, concorda. “A moda por muito tempo foi algo inatingível. E quando algo é inatingível, as pessoas se sentem confortáveis zombando da coisa ou a atacando”.

Em certo momento de “Cruella”, a personagem de Stone diz a Thompson “você vai me matar porque meu look chamou mais a atenção do que o seu?”. E a personagem de Thompson responde que sim, o que não surpreende.

Mas, embora a moda atraia muito os cineastas, ela também pode ser um campo minado. Como caricaturar alguma coisa que já beira a caricatura, sem recair no humor burro? “É difícil encontrar o equilíbrio”, disse Finerman. E é por isso, disse Steele, “que há tão poucos filmes bons sobre moda”.

Vestida para matar

Ainda que a moda seja um mundo “ostensivamente acessível”, como disse Coles, especialmente agora que os desfiles passam ao vivo em toda plataforma de mídia social, ela é muito mais nuançada do que o cinema costuma retratar. O fato de que pareça um alvo fácil não a torna fácil de atingir.

De fato, os filmes de maior sucesso sobre moda em geral não falam diretamente sobre o setor, e em lugar disso são trabalhos que empregam roupas elegantes como expressão dos personagens –“Patricinhas de Beverly Hills”, “Gigolô Americano”, “O Grande Gatsby”.

Ou, com cada vez mais frequência, documentários que expõem o lado humano do setor –“Unzipped”, “The September Issue” ou “Valentino: The Last Emperor”.

Gillespie, o diretor, disse que “não tinha muita ideia sobre filmes de moda” antes de começar a filmar “Cruella” e que não consultou pessoas do setor ao montar o filme. Ele se concentrou em usar imagens de arquivo de lugares como as oficinas da casa Dior, para referência. O filme, afinal, se passa na década de 1960.

Mas mesmo então estilistas não vestiam suas criações mais extremas para ir ao trabalho —a Baronesa parece estar sempre a caminho de um coquetel— ou caminhavam pela passarela com andar mais exagerado do que o de qualquer modelo, como Estella-Cruella faz.

Talvez não importe. E o filme acerta quanto a algo muito importante, mesmo que isso não seja acurado em termos cronológicos –roupas de pele não são mais consideradas chiques em muitos círculos.

“Todo mundo esquece que a moda é antes e acima de tudo um negócio”, disse Finerman.

Seria de imaginar que isso a torne menos atraente para Hollywood, mas os fatos apontam na direção oposta. O mundo da moda de “Cruella” não é o mundo da moda real, mas o mundo da moda da mente coletiva. E, na mente coletiva, a moda ainda parece ser vilã, apesar de —ou mais provavelmente por— despertar tanto entusiasmo.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.