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Don DeLillo se esmera de novo em desenvolver sua imaginação do desastre

'O Silêncio' não é a primeira ficção a lidar com os cacos da civilização diante de um evento traumático

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Marcelo Pen

Tradutor, crítico literário e professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade de São Paulo

O Silêncio

  • Preço R$ 49,90 (110 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Don DeLillo
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Paulo Henriques Britto

Logo notamos que, num padrão hoje habitual, se trata de uma ficção curta. Depois, que sua estrutura dramática convoca à mente o palco do teatro ou a tela do cinema, com o enredo composto de cenas e muitas falas, e as descrições que poderiam servir como marcas para a encenação, a câmera ou os atores.

Por fim, que Don DeLillo novamente se esmera em desenvolver aquilo que Henry James certa vez chamou de “imaginação do desastre”. Em “Cosmópolis”, ele cuidou, em uma fábula semialegórica, das fraturas do capitalismo global. Em “O Homem em Queda”, do trauma relacionado ao 11 de Setembro.

Agora, é o fim do mundo, ou algo que o valha. Diante do esgarçamento do frágil equilíbrio geopolítico e ecológico que sustenta o modelo hegemônico civilizatório, da ameaça de pandemias, do ataque de facções de extrema direita sob a tutela das megacorporações e da impostura neoliberal, não é difícil imaginar esse passo derradeiro.

A ação se passa num futuro bem próximo, pós-Covid. Um casal sofre um pouso forçado do voo que os trazia de Paris a Nova York, por causa de uma pane não explicada. Outro, que os aguarda junto com um amigo mais jovem, vê a tela da televisão escurecer, ao mesmo tempo em que as luzes da cidade se apagam e os outros aparelhos eletrônicos param de funcionar.

Nas trevas de Nova York, multidões tomam as ruas, depois são dispersadas. Barricadas diante das lojas. As comunicações se interrompem. O ciberespaço e os sistemas de segurança entram em colapso. Seria um desastre natural? Agressão alienígena? De determinados agentes ou países? Apocalipse cibernético? Ninguém sabe ao certo.

O grupo afinal se reúne. Temos dois professores de física (uma aposentada), dois profissionais liberais, uma poeta. Um tipo de elite, portanto, assentada no centro do mundo —o fato de um casal chegar da antiga capital do século 19 não parece ser coincidência. Poderíamos esperar que viesse daí uma espécie de balanço –as singularidades e a miséria da experiência contemporânea, mas não é bem isso o que ocorre.

O romancista americano Don DeLillo - Reprodução

Os amigos passam, é verdade, a entreter algumas ideias de Einstein, concepções filosóficas, comentários sobre o progresso da tecnologia contemporânea. Mas são meras alusões, nada verdadeiramente se desenvolve.

Nem chegam a constituir diálogo; são na maioria monólogos, falas independentes, por vezes descontextualizadas, expressas por personagens apartados uns dos outros (a não ser quando encetam um rápido ato sexual) e experimentando, cada um, algum tipo de dissociação psíquica.

Alguém em determinado momento diz “nós somos gente, os cacos humanos de uma civilização”. Não é a primeira ficção a lidar com os cacos da civilização diante de um evento traumático. Um exemplo moderno é “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, com seus debates à maneira de correntes de pensamento que confluem metonimicamente para compor o estágio da cultura europeia às portas da Primeira Guerra.

No presente, porém, não há debates, paixões, duelos. Às vezes, nem mesmo frases completas, mas palavras, elencadas de forma paratática. A ausência de contato humano e de comunicação parece ter afetado até a subordinação sintática.

Sabemos que a experiência do trauma deflagra um curto-circuito da linguagem, mas o que revelam essa tela escura e essa dissonância sobre a realidade atual? A narrativa evita se expandir, como se o silêncio fosse a única resposta lógica possível.

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