Estrelas da Broadway migram para a televisão para pagar as contas na pandemia

Teatros da famosa avenida são caros demais para operar com plateias reduzidas e poderão reabrir em setembro

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Alexis Soloski
The New York Times

Em março, a atriz Kelli O’Hara chegou à chamada Gold Coast, no estado americano de Rhode Island. Uma companhia formada por heróis do teatro, ganhadores de prêmios Tony em quantidade suficiente para decorar todas as lareiras de uma mansão, estava reunida lá.

“Foi como se, quando a Broadway disse que ia fechar as portas, cerca de 20 de nós tivéssemos decidido nos unir para montar uma peça numa cidadezinha do litoral”, disse O’Hara em entrevista telefônica recente.

Mas O’Hara —e colegas como Christine Baranski, Nathan Lane, Debra Monk e Cynthia Nixon— não tinham ido a Newport para uma produção teatral de verão. Ou por causa dos frutos do mar. Eles estavam lá para gravar cenas em locação para a série “The Gilded Age”, de Julian Fellowes, que fala sobre a era dourada do capitalismo americano no século 19 e estreará na HBO em 2022.

Com os teatros da Broadway fechado desde abril do ano passado, “The Gilded Age” se uniu a outras séries em cartaz, como “The Good Fight”, “Younger” e “Billions”, e a novas produções, como “The Bite” e uma versão repaginada de “Gossip Girl”, a fim de oferecer um refúgio reluzente para os astros do teatro durante a paralisação.

Artistas da Broadway sempre participaram de séries de TV. (Os créditos de qualquer ator de teatro dos anos 2000 incluíam quase que automaticamente participações especiais na série “Law & Order”.) Mas nos últimos 12 meses, o trabalho em televisão —que costuma ser mais bem pago do que o teatro e oferecer benefícios mais luxuosos— era basicamente a única atividade disponível no mercado.

“As pessoas estão empolgadas por poderem trabalhar, por terem contato humano, por estarem no set contando uma história, uma vez mais”, disse Allison Estrin, diretora de elenco de “Billions”. “Todos os atores com quem conversei se declararam gratos e empolgados por poderem voltar ao trabalho.”

E porque todo ator de teatro estava repentinamente disponível, a televisão jamais pareceu tão teatral. (Os atores que participaram de “The Good Fight” bastariam para encenar uma remontagem decente de Stephen Sondheim.) A televisão voltará a ser o que era? E a Broadway?

Mais ou menos um ano atrás, os diretores de elenco teriam de competir com —ou manobrar para encaixar em seus cronogramas— os compromissos dos atores na Broadway. “É sempre um pesadelo de agenda, ter de trabalhar em horários que acomodem os das apresentações dos atores no teatro”, disse Robert King, um dos criadores das séries “The Good Wife” e “The Bite”.

“É triste dizer, mas a situação funcionou em nosso favor”, ele acrescentou, sobre o fechamento dos teatros. “Porque pudemos marcar nossas filmagens com mais liberdade.”

Tavi Gevinson e Adam Chanler-Berat, astros do novo “Gossip Girl”, tinham contratos assinados para uma remontagem de “Assassins”, um musical de Stephen Sondheim.

“Nós teríamos de trabalhar fora de horário e dar cambalhotas com nosso cronograma para os acomodar”, disse Cassandra Kulukundis, diretora de elenco de “Gossip Girl”. A pandemia pôs fim à necessidade de malabarismos com o calendário. Isso facilitou a vida de Kulukundis? “Na verdade, isso deixou minha vida um pouco mais triste. Eu prefiro ver essas pessoas trabalhando [no teatro].”

Embora algumas séries já tivessem completado sua formação de elenco antes que a Covid-19 atingisse Nova York, muitas outras surgiram no cenário com o desejo expresso de empregar os atores de teatro.

“Todo mundo está ciente de que o momento é horrível”, disse Warren Leight, “showrunner” de “Law & Order: Special Victims Unit”. “E, se você pode ajudar, ajuda.”

“Comecei a procurar os atores bem cedo”, ele acrescentou. “Decidi que neste ano o primeiro grupo de atores que procuraríamos seria o pessoal da Broadway, o pessoal off-Broadway.”

Ele calcula que tenha empregado em média dez atores de teatro —Jelani Alladin, André De Shields, Adriane Lenox e Eva Noblezada, por exemplo— em cada episódio da série nesta temporada.

Robert e Michelle King, conceberam a série de horror cômico “The Bite” em parte para manter atores empregados. “Empregar pessoas que estavam sem trabalho no teatro era nossa principal preocupação”, disse Michelle King.

Ela não acha que a minissérie de seis episódios, que estreou em maio no canal Spectrum, teria funcionado sem os atores teatrais. Filmada comparativamente cedo no período da pandemia, as cenas em geral foram gravadas a distância, nas casas dos atores.

“Porque as pessoas estão atuando remotamente, precisamos de atores com a melhor técnica possível”, ela disse. “Se não tivéssemos acesso a esse pessoal, a série não teria funcionado em ternos criativos.”

Para Steven Pasquale, veterano da Broadway que também participaria da remontagem de “Assassins", “The Bite” ofereceu uma alternativa muito bem-vinda. “A sensação era parecida com a de fazer teatro, mesmo que estivéssemos rodando uma série de TV, porque muita gente de teatro estava envolvida.”

“The Gilded Age” tem 17 atores ganhadores e indicados ao Tony em seu elenco e adotou um espírito teatral semelhante. “Quando atores de teatro se reúnem num estúdio de TV, alguma coisa acontece”, disse Audra McDonald, seis vezes ganhadora do Tony e uma das estrelas de “The Gilded Age”, e também de “The Bite” e “The Good Fight”. “A sensação é a de uma companha de teatro de repertório.”

Audra McDonald recebe seu sexto prêmio Tony, em 2014 - Carlo Allegri - 8.jun.2014/Reuters

Nixon disse que “The Gilded Age” a reaproximou de colegas com quem fez teatro quando tinha 20, 30, 40 e 50 anos. Numa filmagem recente, recordou a atriz, ela olhou o pessoal que estava participando da cena e comentou com Baranski que “poderíamos facilmente montar ‘The Importance of Being Earnest’ aqui”.

Isso não equivale a sugerir que escalar pessoal de teatro seja um ato de caridade ou uma desculpa para reunir velhos amigos.

Sim, os atores da Broadway podem ter menos experiência diante das câmeras do que seus colegas de Hollywood. Mas estão acostumados a uma linguagem estilizada, e seu profissionalismo e atitude de superar obstáculos os ajuda a suportar bem o ritmo frenético e as mudanças repentinas que surgem num estúdio de TV, especialmente em sets que operam sob as restrições especiais adotadas por causa da Covid-19.

“As pessoas que trabalham no teatro, onde há risco constante de que tudo dê errado, estão sempre alertas”, disse Kulukundis, a diretora de elenco de “Gossip Girl”.

Christine Baranski, ganhadora do Tony e estrela de “The Good Fight” e de “The Gilded Age”, afirma que todos têm “um conjunto de habilidades e respeito pelo processo". "Se você contrata um ator de teatro, ele chega preparado.”

Rose Leslie e Chistine Baranski em cena de "The Good Fight", série da Amazon
Rose Leslie e Chistine Baranski em cena de 'The Good Fight' - Divulgação

Os atores de teatro não se abalam com jargão especializado. Estrin sempre sabe quando o ator que entra na sala para audições em “Billions” vem do teatro. A série é um drama exuberante que conta a história do conflito entre financistas e as autoridades regulatórias que os amam e odeiam, e a atual temporada traz no elenco Daniel Breaker, Stephen Kunken e Sarah Stiles, os três indicados ao Tony. “O diálogo da série não é fácil”, disse Estrin. “Mas eles fazem com que pareça fácil já no momento em que chegam.”

“Younger”, uma comédia rápida que se passa no mundo das editoras de Manhattan, muitas vezes recorre a estrelas do teatro musical para seus diálogos mais engraçados. “São atores capazes de fazer com que as palavras cantem”, disse Steven Jacobs, um dos diretores de elenco da série.

Quando o assunto são palavras que estavam em uso um século atrás, os atores de teatro tipicamente levam vantagem. Nem todos os atores de cinema e TV fizeram trabalhos de época, mas os atores treinados no teatro quase sempre têm pelo menos algumas peças de Shakespeare e de George Bernard Shaw em seus currículos.

“Tendemos a ter experiência em decorar tipos diferentes de texto”, disse Denée Benton, atriz indicada ao Tony que estrela em “The Gilded Age”. “Passei minha carreira inteira trabalhando com espartilho. Quando surgiu a oportunidade dessa série, meu primeiro pensamento foi que eu sabia como fazer aquilo.”

Mas fazer esse tipo de trabalho sem abandonar o teatro nem sempre é possível. Na década de 1990, quando Baranski precisava ganhar mais dinheiro e decidiu procurar trabalho na televisão, ela teve de se mudar para Los Angeles.

“Na época não existia trabalho em TV em volume suficiente em Nova York”, ela disse. “Agora existe, e é ótimo para a comunidade do teatro. Meu Deus, eu queria que isso tivesse acontecido mais cedo.”

Durante a temporada que a Broadway perdeu, as séries gravadas em Nova York permitiram que os talentos da Broadway mantivessem seus planos de saúde e pagassem suas hipotecas sem deixar a cidade.

A televisão também propiciou algum consolo espiritual, um meio de praticar sua arte quando outras formas de fazer isso se tornaram impossíveis. (Ou, como no caso do teatro via Zoom, quando esses novos meios se provaram propensos a defeitos e insatisfatórios.)

“A segurança criativa de saber que vou usar meu talento, a segurança financeira de saber que vou poder pagar minhas contas por algum tempo, isso não tem preço", disse Benton.

O’Hara é ainda mais veemente. “É o mais belo presente que já me deram”, ela disse sobre seu trabalho em “The Gilded Age”. “Eu cheguei a pensar que ainda estava fazendo teatro, nas gravações.”

Mandy Patinkin, uma lenda da Broadway e parte regular do elenco na nova temporada de “The Good Fight”, tentou se aposentar no ano passado, depois de quase uma década trabalhando na série “Homeland”. Mas odiou ficar parado. O retorno à televisão renovou seu senso de propósito. “Parte do que a Covid me ensinou, entre muitas outras coisas, foi apreciar o privilégio de ter uma vocação que pode estruturar meu dia, minha vida, minhas noites e minha passagem pela Terra”, ele disse.

Mandy Patinkin como Saul em cena de 'Homeland' - Sifeddine Elamine/Showtime

Lentamente, a pesada cortina da Covid começa a subir. A maior parte das restrições de capacidade vigentes em Nova York, entre as quais as que se aplicam ao teatro ao vivo expiraram em maio, mas com regras de distanciamento social ainda em vigor. Os teatros da Broadway, que dependem de turistas e são caros demais para operar com plateias reduzidas, poderão reabrir com plateias integrais a partir de 14 de setembro.

Mas, com tantos atores tendo encontrado conforto e segurança financeira na televisão, nos últimos meses, haverá um retorno aos palcos? Mesmo antes da pandemia, obter atores para peças e musicais tinha se tornado mais difícil, disse Bernard Telsey, diretor de elenco de “The Gilded Age” e codiretor artístico do MCC Theater. “Todo mundo quer fazer televisão agora”, ele disse.

Isso se aplica tanto aos atores de teatro mais jovens quanto aos mais mais experientes. “Eles saíram de Juilliard há cinco minutos e já querem fazer uma série de TV”, disse Telsey.

Mas existem prazeres —para os atores e as audiências— que a televisão não é capaz de oferecer, pelo menos não com frequência e não sem muita insistência. Dós de peito não são comuns na TV, e grandes números de dança tampouco. Mas “Younger” inclui algumas canções, entre as quais uma divertida “9 to 5” liderada por Miriam Shor, integrante do elenco original de “Hedwig and the Angry Inch”.

Também houve uma cena nesta temporada em que a atriz principal da série, Sutton Foster, dança ao som de uma canção de “Thoroughly Modern Millie”, um espetáculo que ela estrelou na Broadway. “Sempre procuro desculpas para a ver brilhar como se estivesse no palco”, disse Darren Starr, o criador de “Younger”.

McDonald tenta transformar a TV em algo um pouco mais teatral. Ela vinha pedindo há anos aos King a inclusão de uma cena que envolvesse canto em “The Good Fight”. Os produtores por fim concordaram e, na terceira temporada da série, as personagens de McDonald e Baranski cantam “Raspberry Beret” quanto preparam um processo judicial em plena madrugada. “Foi muito divertido fazer aquilo”, disse McDonald. “Porque sabíamos que era o mais perto que chegaríamos de um número musical.”

Tradução de Paulo Migliacci

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