Florianópolis se vende como gay-friendly, mas é marcada por violência contra LGBTs

Segundo ativista, ataques do tipo sempre existiram, mas 'saíram do armário' com ascensão de políticos conservadores

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Pedro Diniz

Jornalista de moda, foi colunista da Folha entre 2014 e 2019

Há um pedaço do país que se vende como misterioso. Os locais até o 
chamam de ilha da magia, pela combinação exótica de mar, verde e areia branca que, hoje, contrasta com as casas e marinas de alto padrão. E há mesmo muito mistério em Florianópolis, mas ele parece morar é na violência contra a população LGBT, mantida em sigilo 
nesta que se propagandeia como a capital gay-friendly do Brasil.

O título figura nos guias de viagem, que apontam as praias Mole e Galheta como epicentros de um estilo de vida ensolarado e receptivo à comunidade. Mas amar e ser 
amado ali, ou mesmo ser aceito, os próprios moradores sabem, não é o mar de rosas fixado no imaginário de quem só respira a brisa de passagem.

Foi no primeiro sábado de junho que um rapaz de 22 anos saiu para uma de suas consultas periódicas com a psicóloga no bairro de Saco Grande, numa região periférica e diferente daquela dos cartões postais.

Na rua, à luz do dia, três homens cobriram seu rosto com um capuz, e, sob ameaças de morte contra a sua família, teriam começado uma sessão de tortura que terminou com objetos cortantes inseridos em seu ânus e uma cicatriz na perna, feita com cacos de vidro, na qual se lê “veado”. Seu nome não pode ser divulgado e o caso, de repercussão mundial, corre em sigilo na Polícia Civil.

Levado em estado grave ao hospital, ele tentou suicídio durante a internação. Depois, voltou para casa com medo de falar por causa das ameaças.

Ameaças a que o tatuador que quis ser identificado como P. T. sobrevive desde outubro de 2018, quando teve seu apartamento na Lagoa da 
Conceição, ponto convulsivo da área turística da cidade, invadido por 
pessoas que se diziam apoiadoras do presidente Jair Bolsonaro.

Ao final da votação, ouviu o vizinho gritar para um grupo do lado de fora —“é ali”. A porta do térreo, onde morava, foi quebrada, e ele se trancou com o namorado no banheiro.

Aos gritos de “a gente vai matar vocês” e “Bolsonaro presidente”, ele diz ter escutado o seu apartamento e o seu estúdio sendo destruídos. A invasão em si foi rápida, mas ele ficou três horas abraçado ao namorado até sair e ligar para polícia. Do outro lado da linha ouviu que nada seria feito naquele momento, por “falta de contingente”, e porque 
“também estamos comemorando”.

Logo se mudou para outra casa na região do Rio Tavares. Lá, trajado com shorts com a bandeira colorida do Orgulho LGBT, ouviu “não queremos pessoas como você aqui” e “vou te matar, viadinho”. Partiu para a terceira casa, no centro, e passou a dividir o aluguel com um amigo.

Mas não durou nem dois meses. O movimento de gente em busca de um de seus desenhos com temática voltada ao público LGBT irritou os vizinhos. Um deles afixou tapumes na janela para “não ver veado passar”. Decidiu registrar mais uma 
queixa na polícia após novas ameaças e fez uma segunda queixa, 
sobre o caso do antigo apartamento.

Em sua nova casa, ele se sente acolhido e “um pouco mais protegido”, porque ao lado mora um casal de lésbicas. “Essa cidade parece 
tranquila, mas só é se você não é LGBT. A gente escuta toda hora casos de agressões que ninguém comenta ou não dá bola. É tudo muito velado, deixado no escuro”, diz ele.

O estudante W. D. C. passava o feriado da Semana Santa na casa dos pais em Imbituba, a 90 quilômetros da capital catarinense, quando 
começou a receber mensagens no Telegram de um desconhecido.

“D”, como aparece nos prints das mensagens, estava a menos de cem metros dele e começou a enviar imagens de Hitler e suásticas. Dizia saber quem ele era, onde estava, e que o mataria. “Bicha que nem você a gente cura na porrada”, escreveu. Entre emblemas de grupos de supremacistas brancos e fotos de armas, dizia que o iria “moer de porrada”.

Um segundo usuário, que se identificava como G. Santana, foi além. Afirmou ter passado em frente à casa do garoto e que não disparou tiro contra ele “por piedade”. Após registrar, com os pais, o boletim de ocorrência, pediu ajuda a Margareth Hernandes, uma das ativistas mais atuantes em casos de homofobia no Sul.

Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero da OAB de Santa Catarina desde 2013, 
ela recebe diariamente pedidos de ajuda de pessoas acossadas pelo que chama de “uma onda de conservadorismo” que sempre existiu, mas que agora, “legitimada por líderes religiosos e políticos”, saiu do armário.

Em sua casa no bairro de São José, a única da rua ladeada por cercas elétricas, a advogada, que é lésbica, 
lida hoje com ameaças de grupos que invadiram suas redes após ela sair em defesa do jovem torturado em Florianópolis no início deste mês.

Hernandes explica que a subnotificação de casos em todo o estado é fruto de um silenciamento que vem desde os anos 1980, quando viu 
“amigas surradas por estarem de mãos dadas”. “Hoje, a grande diferença é que os movimentos sociais se levantam mais à mesma medida em que os crimes se tornam mais cruéis e os tentam invisibilizar”, diz.

Ela lembra o caso da transexual Jenifer Celia Henrique, assassinada a pauladas numa construção no bairro dos Ingleses. O reciclador Dik Greison Isidoro, apontado como o responsável, ainda deve ir a júri popular, três anos após o crime. À época, a investigação não considerou nem mesmo a identidade de gênero de Jenifer, que foi tratada como 
homem mesmo após a sua morte.

O grupo de pessoas transgênero é o mais vulnerável entre as letras que compõem a sigla LGBT. Segundo levantamento da Antra, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 175 foram assassinadas só no ano passado, cinco delas no estado de Santa Catarina. Os campeões em números absolutos são São Paulo, com 29 mortes, e o Ceará, com 22.

Os números, porém, não ilustram a realidade de forma fiel, já que, por falta de monitoramento do poder público, tanto o levantamento da Antra quanto o do Grupo Gay da Bahia, o mais antigo do país e que calcula que 237 pessoas LGBT foram mortos em 2020, são feitos com base em notícias publicadas pela imprensa.

Nenhuma pesquisa, porém, refletiria uma realidade ainda mais à sombra —o índice de suicídios entre jovens LGBT de Florianópolis. Coordenadora estadual do coletivo Mães pela Diversidade em Santa Catarina, a psicóloga Andrea Carvalho afirma que muitas famílias “escondem os casos para manter as aparências”.

“O aspecto provinciano da cidade e o fato de que muitos desses núcleos são tradicionais e conservadores dificulta uma compreensão real do problema. Há cartas deixadas 
que não vêm à tona, mães que perdem seus filhos e têm vergonha”, diz.

No sábado do Dia dos Namorados, ela e dezenas de outras mães marcharam pelo centro da capital catarinense para protestar contra a tortura sofrida pelo jovem florianopolitano e contra a homofobia no estado.

Pararam em frente ao mercado público, onde turistas davam garfadas na tainha. Com um megafone, gritavam “parem de matar nossos filhos”.

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