Descrição de chapéu
Livros África

'Invenção das Mulheres' mostra como Ocidente impôs papéis de gênero

Segundo a nigeriana Oyèrónké Oyewùmí, a colonização inventou tradições ao reconstituir a civilização iorubá

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rosane Borges

Jornalista e pesquisadora da ECA-USP

A Invenção das Mulheres

  • Preço R$ 69,90 (324 págs.)
  • Autor Oyèrónkẹ́ Oyewùmí
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução Wanderson Flor do Nascimento

Que as formas de organização social não são um dado imperturbável na história da humanidade e, portanto, não gozam do estatuto de cláusula pétrea, isso toda uma tradição de estudos se encarregou de vaticinar. É ocioso falar da vida humana dando de ombros para o caráter inventivo das tradições e das categorias tidas como universais.

O livro "A Invenção das Mulheres", da socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí, comprova esse postulado de forma assertiva e desconcertante. É uma obra que rastreia algumas noções ocidentais que se impuseram como chave explicativa única para o exame de práticas culturais diversas, frequentemente concebidas como se fossem peças imemoriais.

Ao se voltar para o arcabouço conceitual dessas noções, Oyewùmí aponta, de um lado, que elas não são coringas intercambiáveis e, de outro, apresenta distintas perspectivas éticas e ontológicas que compuseram modos de existência da chamada Iorubalândia.

O lugar e o papel das mulheres são a vereda trilhada pela autora para demonstrar que a empresa colonial reconstituiu a civilização iorubá por meio de um processo de invenção de tradições generificadas, algo inexistente antes do contato com o Ocidente.

Em tempos marcados por debates abrasivos e intervenções fulminantes no espaço público, se deve advertir que o empenho do livro não é deslegitimar os estudos de gênero, a práxis feminista, mas, antes, as observações são de outro feitio —comprovar que o processo de colonização inoculou na cultura iorubá expressões sociais e políticas que delinearam horizontes axiológicos, moldaram formas heurísticas de acesso às cosmogonias africanas.

Devemos igualmente advertir, reproduzindo o posicionamento da autora, que sustentar a ausência do termo “mulher” como categoria social não significa complacência com “uma hermenêutica antimaterialista, uma desconstrução pós-estruturalista do corpo”, uma vez que a dimensão material do corpo é um vetor importante na cultura iorubá. Poderíamos, assim, dizer que se trata de um exercício de diferenciação, e não de valoração.

De acordo com Oyewùmí, a lógica da organização do mundo ocidental provém da biologia. Sexo e gênero coincidem nessa lógica, a "bio-lógica"; corpos físicos são sempre corpos sociais.

Nesse exercício de diferenciação, a autora cunha os termos sexo anatômico, macho anatômico e fêmea anatômica para enfatizar a atitude não generificada na relação entre o corpo humano e os papéis, posições e hierarquias sociais. Para ela, não era o gênero, mas a senioridade que dinamizava as relações de poder e de hierarquia.

Uma vez que o iorubá é uma língua sem marcadores de gênero, Oyewùmí atribui à tradução linguística e cultural equivocada do Ocidente a correlação entre gênero, sexo e lugar social na Iorubalândia, que acaba por recobrir todas as latitudes da vida coletiva e individual.

A divisão sexual do trabalho, a vinculação do exercício do poder ao rei, ao homem, é prova desse esforço colonial de categorização. “O acesso ao poder, exercício de autoridade e adesão em ocupações derivadas da linhagem, era regulado internamente pela idade e não pelo sexo,” afiança a autora.

No seu esforço de pensar a cultura iorubá em seus próprios termos, Oyewùmí acaba nos oferecendo uma plataforma extensa para revolvermos o que foi considerado placidamente indiscutível e insuscetível de interrogação. A ousadia, outra vez, reconduz à crise do sagrado –o inviolável pode ser violado, o instituído pode ser questionado do lugar de sua instituição.

Em tempos de convocação antirracista, de descolonização do pensamento, "A Invenção das Mulheres", mesmo sendo publicada com fantástico delay —o que revela a face do racismo epistêmico no Brasil— possui força diamantina para combater a violência dogmática que soterrou formas de leitura e de compreensão do mundo postas à margem da civilização ocidocêntrica.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.