Lugar de mulher é a livraria; veja como elas mudaram o mercado dos livros e editoras

Minoria entre nomes publicados e estudados, autoras se unem e começam novos negócios em busca de visibilidade

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'Dig', obra da artista Sadie Wendell Mitchell, de 1909

'Dig', obra da artista Sadie Wendell Mitchell, de 1909 Reprodução/Library of Congress

São Paulo

Uma livraria só com obras de escritoras. Uma editora comandada por mulheres. Afinal, por que isso é notícia? Como em boa parte do mercado de trabalho, embora as mulheres sempre tenham estado presentes nas mais diversas áreas do mundo dos livros, elas são minoria nos postos de comando e nas prateleiras.

Se entre 1965 e 1979 chegava, com dificuldade, a 20% o número de livros publicados no Brasil de autoras mulheres pelas grandes editoras, mais recentemente o cenário mudou pouco. Um estudo da professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, mostra que, entre 1990 e 2014, de todos os livros nacionais publicados no país pelas grandes editoras, 30% eram assinados por mulheres.

Desde 2014, porém, segundo Dalcastagnè, as coisas podem estar finalmente se transformando. “Há muita editora nova surgindo e se consolidando, e há também um público pedindo por mais livros de mulheres”, diz a professora e pesquisadora, para quem as redes sociais são uma chave importante para entender a mudança.

Foi numa delas que nasceu, em 2017, o Mulherio das Letras, uma articulação nacional por igualdade no mercado editorial formada por escritoras, editoras, designers e tradutoras e que organiza encontros e debates.

A editora Escaleras, da Paraíba, surgiu dentro desse grupo. Comandada por Débora Gil Pantaleão, que se mudou depois para Salvador, a casa, que não teve investidor nem fomento, tem como foco os livros de escritores de primeira viagem.

Pantaleão conta já ter passado por situações difíceis, em que tanto homens como outras mulheres quiseram se apropriar de seu trabalho por julgar saberem mais que ela. O mercado está mudando “não por ser bonzinho ou politizado”, diz ela, mas por saber que não venderia como antes se não mudasse.

“Não é de agora que mulheres ou pessoas negras começaram a trabalhar com livros, mas agora isso se junta à força das pessoas, de não aceitarem mais certas coisas, e o mercado vê que, se não muda, perde cliente”, diz.

Ainda é difícil, porém, se inserir no mercado, segundo Pantaleão, que resolveu criar uma feira de livros apenas de sua editora ao perceber a falta de transparência e de divulgação nos convites para eventos, nos quais se veem sempre, diz, as mesmas marcas.

À frente de uma editora sua, Pantaleão vai tendo cada vez mais companheiras. “As mulheres sempre estiveram presentes no mercado editorial como revisoras, preparadoras, tradutoras, ou seja, nos bastidores”, diz Maria do Rosário Pereira, que faz parte de um grupo de pesquisa sobre a presença de mulheres na edição. Elas, porém, não estavam à frente dos negócios, como livrarias e casas editoriais, diz a professora do Cefet-MG e da Universidade Federal de Viçosa.

Suas pesquisas mostram que a partir dos anos 1980 e, sobretudo, dos 1990 é que o cenário começa a mudar, com a maior profissionalização das mulheres, mais presentes nas universidades a partir da década de 1970.

Pereira, Ana Elisa Ribeiro e Renata Moreira, também professoras e coordenadoras do grupo de pesquisa Mulheres na Edição, do Cefet-MG, acabam de lançar “Prezada Editora,”, livro que reúne estudos seus e de outras pesquisadoras sobre importantes nomes da editoração brasileira, como Rose Marie Muraro, à frente da Rosa dos Tempos, e Rejane Dias, da Autêntica, ambas fundadas nos anos 1990.

mulher em foto preto e branca de lado com cabelos escuros e óculos de sol
A escritora, intelectual e feminista brasileira Rose Marie Muraro em 1975 - Folhapress

“Há mulheres no mercado editorial com projetos claramente feministas, mas há também aquelas que, mesmo sem esse viés, exploram em seus catálogos a bibliodiversidade”, diz Pereira, para quem o fato de dar espaço a vozes que antes não apareciam no mercado hegemônico faz aparecer uma maior diversidade de publicações.

Os empecilhos ainda existentes para que mulheres ocupem lugares de destaque e de poder no mundo dos livros são os mesmos dos de outras áreas profissionais, afirma Pereira, como a organização do trabalho doméstico, na qual a desigualdade de tarefas gera jornadas a mais para as mulheres.

O trabalho não remunerado e mal compartilhado em casa é o que também pode gerar o menor número de escritoras mulheres sendo publicadas, segundo Dalcastagnè. “Enquanto um homem pode estar escrevendo, as mulheres cuidam das crianças e da casa. É um desequilíbrio que precisa ser alterado para qualquer profissão, mas que se complica na escrita, uma vez que, na maior parte dos casos, se escreve no tempo livre.”

mulher branca de cabelo ate o queixo liso e de cor clara usando jeans e blusa cinza sentada em meio a estantes de livros e um sofá;ao fundo, pessoa de cabelo curto usando mascara mexendo em livro
A modelo e empresária Johanna Stein (sentada), dona da livraria Gato sem Rabo - Divulgação

Há ainda uma outra questão a ser considerada, lembra a professora e pesquisadora da Universidade de Brasília, a ideia segundo a qual livros de homens possam interessar homens e mulheres, enquanto os livros de mulheres interessam só a mulheres.

“Por que o homem heterossexual não se interessa por livros escritos por mulheres?”, pergunta Pantaleão. “Vem a palavra besteira, como se aquilo não dissesse respeito a ele, como se uma mulher não pudesse escrever livros diversos, e como se existisse ‘a mulher’”, diz a editora e escritora.

Dalcastagnè aponta ainda um outro dado. Numa pesquisa em revistas acadêmicas, viu que, embora as mulheres fossem a maioria entre autores de artigos na área de literatura, seus objetos de estudo eram em grande parte escritores homens. “Quanto mais se fala de um autor, mais se rumina sua obra e mais ela fica em evidência. Quando não falamos de uma obra —seja contra ou a favor—, ela vai desaparecendo”, diz.

Foi contra esse desaparecimento que Johanna Stein resolveu abrir uma livraria só com obras de mulheres. Ela conta que a Gato sem Rabo, aberta no mês passado em São Paulo, nasceu de uma dificuldade enfrentada por ela em encontrar referências bibliográficas de pensadoras mulheres quando fazia sua pesquisa de conclusão da faculdade de artes.

Sem experiência no mercado editorial, ela diz ter percebido que um espaço como o de uma livraria que também promovesse debates e palestras poderia jogar luz sobre autoras que não vinham recebendo a devida atenção.

“Eu entrava em livrarias, ia na seção de clássicos, e só tinha homens. É importante desmistificar essa ideia de que o homem é a voz neutra, porque não é”, diz Stein. Com os holofotes voltados principalmente para escritoras do chamado sul global —países pobres, em desenvolvimento e áreas e grupos menos privilegiados dentro dos países ricos—, a livraria, nos primeiros quatro dias de abertura, vendeu quase metade de seu estoque, segundo a proprietária.

Na opinião de Pantaleão, a iniciativa paulistana é interessante, mas distante de sua utopia. “Sonho que isso não seja necessário, que não houvesse seções para autores mulheres ou negros, já que não temos uma seção para literatura de autoria branca. Você não chega numa livraria e procura a seção de escritores brancos, mas porque ela é toda a livraria.”

Segundo Dalcastagnè, a Gato sem Rabo faz parte de uma luta política. “Uma vez que não temos presença, não somos expostas nas grandes livrarias, é um gesto que pode ter alguma repercussão. É uma resposta a uma invisibilização de muito tempo e uma experiência para ser avaliada com o passar do tempo.”

A guetificação que poderia advir de uma livraria como essa já está posta, pois já existe na sociedade a ideia de que livros de mulheres só interessam a mulheres, diz Dalcastagnè. “Já que estão dizendo que é assim, vamos ver o que acontece quando as obras são expostas.”

Na visão de Pereira, ao mesmo tempo que iniciativas como a de Stein conferem visibilidade às mulheres, há o problema do rótulo, que aponta para uma diminuição das obras. “Textos e reportagens frisando que é uma mulher a fazer tal ou tal coisa faz parecer que é um feito sobrenatural. ‘Nossa! Uma mulher abriu uma livraria’.” Ainda assim, Pereira diz achar que, por enquanto, é necessário frisar tais realizações, para mostrar o que nunca tem visibilidade e para que novas gerações possam naturalizar essas posições.

Na fachada da Gato sem Rabo não está escrito que a loja tem só escritoras, muito menos que o acesso seja restrito a clientes mulheres. Stein diz que o público, formado em grande parte por moradores e frequentadores da região central da cidade, tem sido composto também por homens desacompanhados. “Talvez sejam pegos desavisados.”

“Prezada Editora, – Mulheres no Mercado Editorial Brasileiro”

  • Preço R$ 58 (200 págs.)
  • Autoria Organizado por Ana Elisa Ribeiro, Maria do Rosário A. Pereira e Renata Moreira
  • Editora Moinhos e Contafios

Livraria Gato sem Rabo

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