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'Mérito' encerra trilogia impecável de Rachel Cusk com chave de ouro

Último romance da série mostra como as narrativas que escrevemos nos moldam tanto quanto nós as moldamos

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Mérito

  • Preço R$ 59,90 (192 págs.); R$ 46,90 (ebook)
  • Autoria Rachel Cusk
  • Editora Todavia
  • Tradução Fernanda Abreu

Não é incomum que continuações sejam um tantinho decepcionantes, ou que séries de livros tenham seus altos e baixos. Não é o caso aqui. “Mérito” encerra com chave de ouro a já aclamada —e impecável do início ao fim— trilogia de Rachel Cusk.

Como nos dois anteriores —“Esboço” e “Trânsito”, que também contam com a excelente tradução de Fernanda Abreu—, o argumento é simples. Tudo se resume aos encontros da narradora, Faye, com uma série de personagens que relatam, em conversas informais que não obstante são profundas e reveladoras, episódios de suas vidas. Neste, Faye, que é escritora, participa de eventos literários em diferentes países.

O que parece passividade, uma vez que Faye se manifesta bem menos do que seus inúmeros interlocutores, é na verdade um esforço ativo de perceber, selecionar, organizar e narrar. Também do leitor é exigido o mesmo, de modo que as resenhas da trilogia, embora quase sempre elogiosas, tendem a ser bem diferentes entre si.

mulher sorri de braços cruzados
A escritora canadense Rachel Cusk, em 2016 - Leemage/AFP

É difícil e injusto definir o tema central de livros tão ricos e complexos, e minha definição —o que percebi, selecionei, organizei e estou como que narrando aqui para você— já é por si só parcial.

De modo geral, é possível dizer que o primeiro volume se dedica a mostrar que o real, ou o próprio realismo, não passa de uma convenção entre outras, enquanto o segundo se concentra no “doloroso estado de autoconsciência em que as ficções humanas perdem sua credibilidade”, para citar um trecho de "Mérito".

Faye, que é divorciada e mãe de dois filhos, ouve, neste terceiro volume, relatos que parecem questionar a proporção de sorte ou do próprio mérito em uma trajetória. Mas o que está no centro destes relatos são os vínculos e as relações familiares, e a herança ou o legado devem ser vistos, aqui, como as narrativas que escrevemos em conjunto —narrativas que nos moldam tanto quanto nós as moldamos.

Os relatos que Faye escuta, como diz uma tradutora portuguesa, são de “experiências que não pertencem integralmente à realidade”, ou seja, experiências compostas por sentimentos, sensações, impressões, intuições, palpites, suposições e hipóteses, e por isso mesmo confusas, intricadas e difíceis de serem postas em palavras.

Não à toa, nossa maneira de reter, recordar e relatar o que nos acontece é um dos pilares de toda a trilogia.

Em certa passagem, por exemplo, uma escritora, também ela portuguesa, diz ter ficado grata quando o filho começou a reparar em certas coisas por si mesmo, o que lhe tirou momentaneamente o fardo da percepção e da necessidade de contar a própria história —antes de lembrar que esse “fardo” é também a razão pela qual ela vive.

Creio que seja a seguinte definição frouxa que conecta os diferentes episódios da trilogia: o fardo e a alegria compartilhados de viver para contar.

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