Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

Negros não são vistos como humanos, mas objetos, diz autor de 'Afropessimismo'

Para professor de estudos afro-americanos a dinâmica racial da escravidão se mantém e não há conciliação possível

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Rio de Janeiro

Em meados dos anos 1980, em visita ao Rio de Janeiro, Frank B. Wilderson 3º foi parar em uma festa numa mansão. Ele havia ido encontrar um grupo de brasileiros brancos de Ipanema, bairro de classe alta da zona sul da cidade, amigos de uma mulher com quem estava saindo.

Quando entrou, todos ficaram em silêncio. Sua acompanhante foi rápida ao dar uma explicação para a presença daquele homem negro na festa —“ele é corretor da Bolsa”, disse, tranquilizando os demais.
“Ela lavou a negritude de mim”, afirma o escritor americano em entrevista à Folha.

Professor de estudos afro-americanos na Universidade da Califórnia em Irvine, Wilderson tem agora seu primeiro livro publicado no Brasil, “Afropessimismo” (trad. Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas, Todavia, R$ 84,90, 400 págs., R$ 54,90 ebook).

homem negro de barba em retrato em preto e branco
Frank Wilderson III, professor na Universidade da Califórnia e autor de 'Afropessimismo' - Divulgação

A obra narra situações semelhantes à da festa no Rio, em que o autor foi alvo de violência racial, desde a infância em Minneapolis, no norte dos Estados Unidos, até sua passagem pela África do Sul, onde fez parte do Congresso Nacional Africano. Os relatos são costurados às premissas da teoria do afropessimismo.

Aos 65 anos, Wilderson diz não estar interessado em conciliações ou reformas. Sua energia está voltada a denunciar o lugar ocupado pelo negro no inconsciente coletivo. Para o autor, a escravidão nunca terminou, e o corpo negro não é considerado humano.

O que é o afropessimismo? É uma lente de interpretação ou uma forma de teoria crítica. A maioria dos estudos raciais faz uma intervenção que eu chamo de reformista, que é dizer: como as pessoas na Bahia podem conseguir casas melhores? Se libertar da brutalidade policial?

Estou muito preocupado com essas perguntas. Mas, como um filósofo, um teórico crítico, não é nisso que emprego minha energia. Minha energia está baseada no trabalho de Frantz Fanon e diz que, não importa onde você vá, a negritude gera uma ansiedade para todos. Essa ansiedade é performada e negociada, e vai ser diferente em Nova York e em Havana.

Nós sugerimos que a escravidão é uma dinâmica racial que não terminou. Não importa o que digam no discurso consciente, no inconsciente o corpo negro não é considerado um ser humano, mas um recurso para as pessoas.

No livro, o senhor argumenta que a violência contra pessoas negras é diferente de outros tipos de opressão porque não é precedida por uma transgressão. Mas uma mulher, ou uma pessoa homossexual, não precisa cometer uma transgressão para ser agredida. Como as opressões são diferentes? A estrutura da violência é diferente. A violência contra outros tipos de pessoas oprimidas, mesmo quando parece gratuita, envolve uma transgressão projetada, percebida. É uma violência hegemônica que busca discipliná-los num regime de heteronormatividade e do patriarcado.

Não acredito que exista um modo disciplinar em relação aos negros. A violência contra pessoas negras não as subjuga a ordens como heteronormatividade, patriarcado ou capitalismo. Essa violência produz um senso de cura psíquica para todos os outros: não negros sabem que, se isso fosse acontecer com eles, teria que ter havido algo transgressor. Além disso, a violência contra os negros é prazerosa por si só, uma forma de contentamento.

No início do mês, uma mulher negra que estava grávida morreu baleada durante uma ação policial em uma favela no Rio de Janeiro. Essa morte ilustra a sua afirmação de que pessoas negras não são vistas como pais, mães, filhos de alguém? Sim. Até 1865, a negritude era escravizada nos Estados Unidos. Aí houve uma guerra civil, emancipação, e as pessoas passaram a andar “livres”. Como a interpretação psíquica a respeito das pessoas negras poderia ter mudado da noite para o dia? Que evidências existem para sugerir isso? As pessoas me dizem: “prove”. Eu digo: “Não, você prove o oposto”. Você me prove que uma guerra aconteceu, correntes foram retiradas e, do nada, negros passaram a ser vistos como cidadãos e não como recursos.

Tem sido comum que vídeos de violência policial contra negros, como no caso de George Floyd, viralizem. Pessoas brancas compartilham esse conteúdo e, conscientemente, se dizem revoltadas. Mas, inconscientemente, o que acontece? O que temos no Instagram e no Twitter são duas coisas colidindo. São imagens que produzem evidência para a causa, mas que também são prazerosas de assistir para o inconsciente. Como não refletimos sobre aquilo como sofrimento de um ser humano, a proliferação dessas imagens serve para fortalecer a divisão entre humanos e negros.

O inconsciente de uma pessoa sabe: para que isso acontecesse comigo, teria que haver uma justificativa. As imagens têm uma presença bifurcada. Sim, talvez elas ajudem com punições, mas também produzem uma sensação mais profunda de nós contra eles.

É uma fetichização da violência contra negros? Sim, é exatamente o que eu queria dizer.

O senhor faz uma crítica às pessoas que se consideram aliadas da causa racial, como mulheres e grupos LGBT, dizendo que eles matam o desejo e o pensamento negro. Como isso acontece e como aliados deveriam agir? Minha orientadora, Saidiya Hartman [professora da Universidade Columbia, em Nova York], já falou sobre isso melhor do que eu. Se ela entra numa sala com várias mulheres brancas para falar sobre sexismo, elas não dão espaço para que ela fale sobre como o homem negro tenta performar o poder do patriarcado, mas na verdade não consegue nunca ter um falo.

A coalizão multirracial impõe uma certa limitação acerca do que é permitido falar. Diz que nós temos que falar sobre como as opressões nos afetam, e não sobre como atingem diferentemente mulheres não negras e negras.

A política demanda uma solução para o problema que é apresentado, mas acredito que o problema que a carne negra apresenta não pode ser solucionado politicamente. Fanon diz que a psiquê de todos quer que o negro resolva seus problemas. Se pessoas negras não podem ser transpostas para o inconsciente como cidadãos, então a liberação dos negros é uma perspectiva aterrorizante, porque não significa o fim do capitalismo, significa o fim do mundo como o conhecemos.

E como refundar a sociedade? O que fazer com os conceitos trazidos pelo afropessimismo? Em qualquer sociedade, há pessoas negras entre 12 e 25 anos, e entre 65 e 80, que estão imbuídas de tanta raiva que estão prontas para derrubar tudo. E há pessoas negras, especialmente profissionais negros, entre 30 e 65 anos, que dizem: “Meu Deus, vamos ver como podemos canalizar isso”.

Em toda sociedade há esse vulcão, talvez inativo, típico da juventude negra, que tem um tipo de raiva que pode se proliferar exponencialmente. Uma coisa que podemos fazer é prestar atenção a isso, em vez de tentar canalizá-lo em torno de um objetivo reformista.

A revolta dos escravos é um tipo de resistência diferente da revolta indígena, que procura ter de volta o que foi perdido, como a Amazônia. A revolta do escravo negro não tem esse tipo de objetivo. O objetivo tem sido uma expressão violenta, a destruição do senhor, da sua família, do seu lugar, e o fim disso que temos aqui. Essa é uma ideia aterrorizante incorporada à negritude, uma raiva sem destino. Uma coisa que a esquerda pode fazer é prestar atenção e acolher isso, em vez tentar canalizá-lo da maneira que seja confortável para ela.

Ao fim do livro, o senhor fala brevemente sobre Barack Obama [ex-presidente dos Estados Unidos]. Por que o senhor acha que americanos elegeram para a presidência um homem negro, que, segundo o seu raciocínio, nem sequer é considerado humano? Há dois lados da moeda, como diz Fanon. Um é a negrofobia, que é muito evidente, e o outro é a negrofilia, que são o prazeres da carne, da música negra. Mas nem a negrofobia nem a negrofilia tratam o negro como humano. Ambos estão tratando os negros como objetos, para serem destruídos ou consumidos.

Pessoas como Kamala Harris [vice-presidente] ou Obama são como o rap, são instrumentos de um consumo prazeroso. Eu não acredito que o negro possa entrar num cômodo como um sujeito humano, mas isso não significa que o negro sempre entre como algo temido. Ele pode entrar como algo que é amado pela exuberância de sua negritude, pela sua música, ou pela forma como fala. Obama é um homem negro dando crédito a um monte de ideias brancas [ele ri].

Acho que sei a sua resposta, mas a eleição do Obama representou qualquer avanço no sentido de diminuir o racismo? Não! Na verdade, acho que foi o oposto. Obama só se elegeu porque foi visto como alguém que poderia acalmar a ansiedade branca em relação a Bush e à guerra no Iraque. “Ele vai nos resgatar, como Martin Luther King, ele é um bom negro.” Obama foi só um escravo criado pelo mestre.

E quando ele assumiu a presidência, o número de ameaças cresceu exponencialmente. Ele recebia 500 ameaças de morte por dia, o serviço secreto não conseguia acompanhar. Depois de duas eleições, a América voltou ao que realmente era e elegeu Donald Trump, o verdadeiro inconsciente do país. Em 2024, se a Kamala decidir ser a candidata democrata, aposto mil dólares que Trump vence de novo.

O senhor sustenta que toda relação entre negros e não-negros é parasitária. Ao mesmo tempo, cita sua mulher, Alice, que é branca. Como o senhor concilia a sua visão estrutural da sociedade e seus sentimentos, afetos, relações? Esse livro não ajuda a conciliar os problemas. Eu não concilio. Você não pode dizer que porque você ama uma pessoa branca, então você não é o escravo dela.

As relações acontecem em múltiplos níveis. Quando pessoas dizem que se amam, e uma delas é branca e a outra negra, não significa que estejam mentindo. Mas também não significa que elas passem a ser da mesma espécie.

Esse é o desafio de ler o afropessimismo. Saidiya Hartman dizia para mim: por quanto tempo você consegue sentar no casco do navio dos escravos? É o que o meu livro está perguntando: por quanto tempo você consegue sentar com esse problema sem ter que perguntar como escapar dele?


Frank B. Wilderson 3º, 65

Professor da Universidade da Califórnia, é doutor em retórica, mestre em escrita criativa e bacharel em governo e filosofia. Autor de “Afropessimismo”, de 2020, e de “Incognegro: A Memoir of Exile and Apartheid”, de 2015, sem edição no Brasil

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