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Regulação de novas mídias no Brasil anda em velocidade de carroça

Mercado de streaming se estabeleceu sem que país conseguisse, em dez anos, definir regras e tributação

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Ana Paula Sousa

Jornalista e doutora em sociologia da cultura pela Unicamp

A TV aberta foi lançada no Brasil na década de 1950. Apenas meio século depois, em 2001, durante a construção de um marco regulatório para o cinema, foi discutida a obrigatoriedade de as emissoras destinarem parte da receita publicitária para o apoio à produção independente e reservarem algum espaço para filmes brasileiros.

Tais medidas, comuns internacionalmente, chegaram a constar em uma medida provisória, mas foram retiradas do texto final. Essa mesma MP instituiu, porém, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Audiovisual, a Condecine, taxa que todos os segmentos de mercado que exibem obras audiovisuais devem pagar. Todos, menos do VoD, o "video on demand", que não existia em 2001.

Os canais por cabo e satélite, por sua vez, chegaram ao país em 1991 e foram regulamentados em 1995. A Lei do Cabo limitava a participação do capital estrangeiro a 49% e exigia que os operadores oferecessem um canal para obras brasileiras. Por anos, a produção local correspondeu a menos de 5% do que era exibido nos canais fechados.

A regulação mais ampla só viria 20 anos depois, em 2011, quando uma lei permitiu que as empresas de telefonia entrassem na TV Paga e exigiu que os canais exibissem conteúdo nacional e carregassem canais brasileiros.

Nesse mesmo ano, outro modelo surgia, o vídeo sob demanda, então sinônimo de Netflix. E esse novo negócio, que não era mencionado nem na lei de 2001 nem na lei de 2011, se estabeleceu sem regulação específica e sem obrigações relativas ao segmento em que atua.

Como se vê pelo ritmo da regulação das telecomunicações no Brasil, a demora não chega a ser espantosa, mas ela criou um imenso desequilíbrio no mercado e é, além disso, uma ameaça à continuidade da política pública de cinema, hoje muito dependente, em termos de recursos, da TV por assinatura.

É que sobre a TV por assinatura incide um alto volume de Condecine, paga pelas teles. Já quem transmite conteúdo via internet –tecnicamente, via OTT, de over the top–, caso das plataformas, não paga Condecine tampouco é obrigado a divulgar dados.

É nesse descompasso entre a velocidade da tecnologia e a lentidão da legislação que se encaixa a emenda aprovada pelo Congresso e vetada por Jair Bolsonaro. A emenda, que soa a grego para as pessoas comuns, mas que foi vista como mais um golpe a atingir o cinema brasileiro, remete justamente à MP que instituiu a Condecine e que trazia uma rubrica chamada “outros mercados”.

Há dez anos, duas instruções normativas estipularam que o VoD fosse enquadrado nessa rubrica e que passasse a pagar a Condecine por título exibido. A taxa nunca chegou, porém, a ser cobrada. E, com o tempo, foi se sedimentando o entendimento de que esse formato de cobrança, por título, era inadequado para o VoD, tendendo a inviabilizar, inclusive, as plataformas independentes —que haviam comemorado a emenda.

No próprio projeto de lei do deputado Paulo Teixeira, do PT de São Paulo, que representa as demandas da produção independente, lemos que a Condecine Título é abusiva para um negócio cuja natureza é a abundância e não a escassez —como é o caso de uma sala de cinema, que tem um número limitado de salas e horários. Também o Conselho Superior de Cinema, em 2015, recomendou que as plataformas foram tributadas a partir de seu faturamento, e não por título.

Mas, então, por que a emenda foi vista como problemática pela produção independente? Primeiro, porque ela foi inserida de forma sorrateira numa MP que não tratava do VoD. Depois, porque a existência dessa taxa era entendida como uma carta na manga para se negociar a regulação do streaming.

Seria agora o momento de comemorar? Não necessariamente. Primeiro, porque o veto ainda pode ser derrubado pelo Congresso —como tem acontecido com vários vetos que envolvem questões orçamentárias da União.

Depois, porque vai ficando claro que essas instruções normativas nunca cumpridas eram menos uma carta na manga da produção independente e mais uma pedra no caminho do grupo de trabalho que, dentro do Ministério das Comunicações, engendra um novo marco legal para o campo audiovisual e que já trabalha com um novo formato de Condecine para o VoD.

O grupo deve elaborar uma minuta de projeto de lei de um novo marco regulatório que, uma vez tornado projeto de lei, segue para o Congresso Nacional —ao lado de outros dois projetos em trâmite. Ou seja, apesar de ser impossível imaginar que saia, deste governo, uma proposta regulatória que leve em conta os princípios da diversidade cultural e da proteção à produção independente, a batalha deve seguir no Congresso.

Na Europa, as plataformas contribuem com a produção independente e garantem a presença de títulos locais nos catálogos. A base para as medidas é aquilo que a teoria econômica define como “falha de mercado”. Esse conceito se refere a situações nas quais o Estado deve agir em defesa do equilíbrio da concorrência, do interesse público e da geração de riquezas no país.

Esses princípios seguem mais válidos que nunca. A forma de os fazer valer foi, porém, modificada pela própria tecnologia, que pôs Google e Amazon na mesma arena das TVs e das teles. É dentro desse novo paradigma —transnacional e verticalizado—, muito diferente daquele de 20 anos atrás, que tem de se dar a luta da produção independente.

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