Arte sacra ganha área VIP dentro da Lei Rouanet e preocupa os especialistas

Bolsonaro muda categorias para projetos, o que pode gerar elitismo e dirigismo, dizem museólogos

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Belo Horizonte

Elitismo, demagogia e dirigismo são palavras escolhidas por alguns especialistas do setor cultural para avaliar a nova portaria do governo Bolsonaro que dá ênfase a arte sacra e belas artes na Lei Rouanet, além de centralizar nas mãos do secretário da pasta as decisões de projetos que pretendem usar o mecanismo de fomento.

Arte sacra já era contemplada pela Rouanet. Nesse sentido, há quem avalie a portaria como um movimento simbólico, um aceno para os setores do bolsonarismo ligados à chamada guerra cultural.

“Na minha avaliação, eles estão querendo criar um discurso para demonstrar que estão fazendo alguma coisa concreta para a área da cultura. Eles não estão fazendo nada, não estão apontando concursos, editais, o fortalecimento das [entidades] vinculadas, nem no ponto de vista deles”, diz o museólogo José do Nascimento Júnior, ex-diretor do Instituto Brasileiro de Museus durante os governos Lula e Dilma. “Há museus que têm discurso conservador, os museus militares, por exemplo, eles [gestão Mario Frias] podiam estar fortalecendo isso.”

Arte sacra é um gênero artístico, assim como arte erótica ou natureza morta. Por isso, causou estranheza o fato de um gênero específico ganhar um segmento só para si dentro da Rouanet, em vez da divisão se pautar por linguagens —como artes cênicas, música, audiovisual et cetera.

Segundo a museóloga Maria Ignez Mantovani, essa segmentação temática e pouco isonômica é menos apropriada do que a classificação anterior, “tanto para proposição quanto para análise de projetos”.

“Arte sacra é um dos elementos, uma das classificações dentro das artes visuais. É uma manifestação importante e que não agrega somente as obras eruditas, mas também —e principalmente— arte popular. Arte sacra não significa que seja erudita. A gente está acostumado a associar com arte católica, mas qualquer museu de arte sacra tem obras de feitura indígena, de matriz afro, é um mundo muito importante na composição artística”, diz. “Por outro lado, temos que encarar a cultura como expressão laica.”

É possível ainda levantar a hipótese de que a arte sacra seria renegada de alguma forma pelo mecanismo de fomento à cultura, mas Beatriz Cruz, museóloga do Museu de Arte Sacra de São Paulo, diz que “independentemente de ter ou não de ter arte sacra como segmento especifico, o museu nunca teve problemas para conseguir patrocínio com a Lei Rouanet”.

“Eu acho que a grande pergunta na verdade é que não temos os membros da Cnic nomeados, esse é o foco principal”, afirma Cruz.

A Cnic, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, composta por representantes da sociedade civil, é responsável por analisar os projetos que buscam recursos via Lei de Incentivo à Cultura, a Rouanet. Só que a gestão Frias não lançou um novo edital após o fim do mandato dos membros da Cnic, que se reuniu pela última vez em abril deste ano. O resultado foi a centralização das decisões nas mãos do capitão da Polícia Militar baiana André Porciuncula, secretário de Fomento da pasta.

“Eu não acho que o problema seja a segmentação por área ou por linguagem. A grande questão é você ter uma comissão para julgamento de projetos. Se você tiver uma comissão que julgue os processo de forma idônea, para fazer o julgamento do mérito dos projetos, o fato de ser por segmento não vai interferir, não acho que alguma área vai ser prejudicada por causa disso”, diz a museóloga do Museu de Arte Sacra.

“Agora, se houver um aparelhamento da Cnic, você pode dividir as áreas de fomento da forma como quiser que vai continuar tendo projetos excluídos.”

A portaria recém-assinada por Bolsonaro e publicada nesta terça permite que o presidente da Cnic —que no caso é o secretário Mario Frias ou algum representante— tome decisões ad referendum, ou seja, isoladamente, sem a necessidade de apreciação pelo colegiado.

“A Cnic é um selo de qualidade da Lei Rouanet. A existência de um órgão representativo da sociedade civil legitima o processo da Lei Rouanet. E eu acho que, no século 21, nós deveríamos trabalhar com esse tipo de solução”, diz Maria Ignez Mantovani.

A museóloga ainda aponta para a categoria belas artes, que, segundo ela, além de indicar algo erudito, é um termo em desuso, principalmente por não ser tão abrangente quanto artes visuais, que inclui linguagens que vão de performance a gravura.

“Não é possível nós considerarmos um desnível entre a feitura erudita e a popular. Percebo que há uma preocupação [do governo Bolsonaro] em valorizar uma cultura clássica. Eu me preocupo muito que possa existir uma elitização da cultura”, diz Mantovani. Segundo ela, é cedo para dizer que a medida resultará em dirigismo na cultura, embora ela não descarte esse cenário num futuro próximo.

“Eu acho que é uma possibilidade [resultar em dirigismo], mas acho que ainda estamos na etapa de conseguir levantar essas questões e ter a expectativa de que o governo possa alargar novamente essas fronteiras. Isso [portaria] saiu ontem, acho que é importante que a sociedade civil se manifeste e possa apontar os pontos principais que possam ser revistos. O efeito que virá a frente ainda não está claro.”

Já Nascimento diz que vê, sim, dirigismo. Segundo ele, a desidratação da Cnic é um golpe na pluralidade na Rouanet. “O processo da Cnic sempre foi uma forma de diversidade cultural”, diz “O importante seria voltar o Ministério da Cultura.”

Isso não deve acontecer tão cedo. Bolsonaro oficializou nesta quarta, na medida provisória da reforma ministerial, a transferência da pasta de Cultura da Cidadania para o Turismo.

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