Brasil de Bolsonaro é tema de peça inspirada em 'Dogville' exibida na França

Encenado no Festival de Avignon, trabalho de Christiane Jatahy adapta contexto de filme para realidade brasileira

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Rana Moussaoui
Avignon (França) | AFP

Se muitas peças teatrais foram levadas ao cinema com sucesso, o exercício oposto acaba sendo mais perigoso. No Festival de Avignon, uma diretora brasileira confunde os limites com uma adaptação de "Dogville", de Lars von Trier, mergulhado na situação de seu país natal.

Para Christiane Jatahy, que trabalha entre o Brasil e a Europa e que já havia evocado o exílio e a aceitação do outro em 2019 em Avignon ("O Agora que Demora", ou "Le Présent qui Déborde"), a linha porosa entre as duas artes é uma marca registrada.

Ilusão e transparência

Em "Dogville" (2003), que conta através de um cenário minimalista a história de Grace, uma fugitiva que se refugia numa cidade mineradora onde é inicialmente aceita e depois explorada, o cineasta dinamarquês "quis uma experiência próxima do teatro e sua transposição para o cinema". "Comigo é o oposto", disse Jatahy em uma entrevista à AFP antes da estreia de "Entre Chien et Loup" na segunda-feira (5).

"Tenho muito interesse nas fronteiras entre teatro e cinema, mas é melhor apagá-las. E utilizo o cinema como parte importante na construção da dramaturgia", acrescenta a diretora teatral e dramaturga.

A jovem forasteira encarnada na tela por Nicole Kidman é vivida no palco pela brasileira Julia Bernat, escolha que não é trivial já que a personagem, rebatizada de Graça, fugiu de um regime autoritário e das milícias, uma alusão muito direta à extrema direita do presidente Jair Bolsonaro e à situação no país.

Graça se refugia numa companhia de teatro que se lança no desafio de reinterpretar "Dogville" com o objetivo de evitar seu final brutal. "Você não tem muito tempo para ser aceita", dizem a ela.

Como no filme, os personagens são acolhedores até a chegada em seus celulares de fake news sobre Graça (no filme, são avisos de procura da polícia). Isso muda seu comportamento, indo até a exploração e o estupro.

Um plot twist às vezes confuso e que provocou críticas divididas, alguns estimando que esse remake caiu por terra ou não agregou muito em comparação com o filme, apesar do engenhoso dispositivo visual.

O cenário se parece mais com um set de filmagem com uma tela gigante no fundo da qual são projetadas imagens filmadas por uma câmera manipulada pelos atores, mas também imagens já filmadas e editadas que se sobrepõem. Cenas do filme são exibidas, quase de forma idêntica, na tela e no set.

"Brinco com a questão do tempo, com a ilusão do cinema e com a transparência do teatro. Como podemos mudar o passado? É o cinema. O teatro, que está no momento presente, pode mudar o futuro", garante Jatahy, que é artista associada no Théâtre de l'Odéon e no Centquatre em Paris e também no Schauspielhaus em Zurique.

Porque, ao contrário do filme que termina em terror, a peça se encerra antes da vingança de Graça, como uma mensagem de esperança. "Mostro os dois lados, porque temos agora a chance de mudar as coisas, mesmo que a realidade mostre o contrário", diz Jatahy.

"O fascismo ameaça o outro e ameaça a nós mesmos. Quando acontece, é um pensamento destrutivo, está muito ligado à situação do Brasil onde os direitos que conquistamos com muito esforço estão sendo restritos, é muito extremo", acrescenta. "Falar de solidariedade através de espetáculos não é questão de bons sentimentos porque é a própria essência da humanidade", insiste a artista que levará a peça a Suíça, Espanha, Itália e Bélgica.

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