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Cinema festival de cannes

Cannes mira o futuro e premia diretora que quer extrapolar os gêneros

Julia Ducournau, de 'Titane', ganhou a Palma de Ouro com filme erótico e violento sobre identidade e aceitação

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Bruxelas

A Palma de Ouro para o filme "Titane", da francesa Julia Ducournau, é um olhar para o futuro do Festival de Cannes, o mais importante evento cinematográfico do planeta.

O longa é o segundo de uma diretora jovem e extremamente ousada, até mesmo para fazer um filme que foi acusado de machista por alguns jornalistas presentes ao festival.

As queixas em geral se referem às cenas megaeróticas de mulheres rebolando sobre carros turbinados, para o deleite de marmanjos.

Mas Ducournau sabe o que está fazendo. "Minha intenção é que o público aceite que gênero não tem qualquer importância no filme. Ele fala de identidade. Na nossa jornada pela vida, o que conta é se libertar das ideias preconcebidas", disse a cineasta em entrevista em Cannes.

Alexia, a personagem principal, é uma figura exótica e ambígua, fria, agressiva, que se transforma em homem para escapar da polícia e para isso precisa violentar um corpo grávido enfaixando com força seios e ventre.

Não é uma transição por escolha, mas para se fazer passar por Adrien, um menino que desapareceu há dez anos. Mas quando o amor se instala entre ela e seu falso pai, o comandante de bombeiros Vincent, Alexia quer ser Adrien para vê-lo feliz.

O que importa em sua história, diz Ducournau, é "o amor absoluto, incondicional. A aceitação do outro como ele é". E a fonte de toda violência, para ela, não são os ataques furiosos de Alexia, mas a ausência de seu pai biológico, alguém que só a olha pelo retrovisor.

Não importa, portanto, que a diretora seja apenas a segunda mulher a ganhar a Palma de Ouro em 74 edições do festival --antes dela, só a neozelandesa Jane Campion havia levado a prêmio, em 1993, por "O Piano", mas dividindo-o com "Adeus Minha Concubina", de Chen Kaige.

"O que me impressionou foi a loucura genial de Titane", afirmou o cineasta americano Spike Lee, presidente do júri --ou, na apresentação que leva em conta as identidades, "o primeiro negro" a presidir o corpo de jurados "com maioria feminina" (cinco mulheres e quatro homens).

As realizações das quatro diretoras concorrentes neste ano (um recorde, embora haja cinco homens para cada mulher) sugere que a luta por mais participação feminina —da qual Ducournau é uma ativista engajada— diz mais sobre justiça social que sobre arte.

A cineasta Catherine Corsini pôs um casal lésbico no papel central de seu "Fratura", sobre os conflitos políticos na França refletidos no setor de emergência de um hospital.

Mas três diretores homens fizeram o mesmo: Paul Verhoeven focou o julgamento de "Benedetta", uma freira lésbica no século 17, a protagonista do road movie de Juho Kuosmanen inicia "Compartimento Nº 6" numa relação com outra mulher, e em "Paris 13º Distrito" é no final que o amor entre moças se estabelece.

A húngara Ildikó Enyedi escolheu o ponto de vista do marido em "A História de Minha Mulher", enquanto Joachim Trier faz uma homenagem amorosa à mulher de 30 anos em "A Pior Pessoa do Mundo", e o chadiano Mahamat-Saleh Haroun, um elogio à resistência e solidariedade feminina.

Das quatro diretoras, só Mia Hansen-Love aborda de forma mais explícita temas comuns da causa feminista —a dificuldade de conciliar a maternidade com a carreira, o desequilíbrio de prioridades dentro de um casamento.

"O que posso dizer é que faço parte de algo que está em movimento", disse Ducournau na entrevista após a premiação. "Houve uma primeira mulher, há agora uma segunda, e haverá uma terceira, uma quarta, uma quinta, uma sexta e uma sétima", respondeu ela a uma pergunta sobre o coletivo 50/50, do qual ela faz parte.

A francesa, que quer ser vista "não por seu gênero, mas por fazer cinema", assinou o filme mais original desta edição, uma mistura de drama, ação, comédia, suspense e ficção científica. Na última quarta (14), declarou que ficaria feliz com um "Prêmio de Audácia", sugerido por uma das jornalistas durante entrevista.

"O que me importa é a reação do público", afirmou, sobre críticas de quem viu em "Titane" violência excessiva ou gratuita. "Quero que meus filmes toquem as pessoas, mesmo que seja por rejeição. Que façam refletir. Se o cinema quisesse deixar todo mundo de acordo, seria uma água morta."

A 74ª edição de Cannes, que marcou a volta presencial do festival depois do cancelamento em 2020 por causa da Covid-19, terminou neste sábado.

O Brasil, que concorria na seleção oficial com dois curtas-metragens, acabou levando menção honrosa nesta categoria pelo paulista "Céu de Agosto", de Jasmin Tenucci, sobre uma mulher grávida que frequenta uma igreja neopentecostal e vive sob a poluição advinda das queimadas.

Fora da competição oficial, o país também foi agraciado por ser um dos países produtores de "Murina", que rendeu a Antoneta Alamat Kusijanov a Caméra d'Or, prêmio destinado ao melhor estreante. O longa é produzido por Martin Scorsese e pela RT Features, do carioca Rodrigo Teixeira.

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