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Claudia Rankine se recusa a ser didática com os brancos em 'Só Nós'

Jamaicana aposta no caos e na imprevisibilidade das conversas para provocar reflexão sobre o racismo

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Fernanda Silva e Sousa

Crítica literária e doutora em letras pela Universidade de São Paulo

Só nós: uma conversa americana

  • Preço R$ 89,90 (352 págs.); R$ 63,90 (ebook)
  • Autoria Claudia Rankine
  • Editora Todavia
  • Tradução Stephanie Borges

O racismo tem sido cada vez mais uma questão central no debate público brasileiro, o que tem se refletido no aumento de publicação de autores negros pelo mercado. Nesse contexto, muitas pessoas brancas têm se interessado em ler escritores negros em busca de um “letramento racial”, isto é, aprender o funcionamento do racismo no Brasil em sua complexidade e, consequentemente, se tornar “antirracista”.

Entretanto, essa ânsia antirracista pode projetar propósitos pedagógicos em todo livro escrito por pessoas negras, como se elas estivessem sempre ensinando algo sobre o racismo.

Quem adquirir com essas expectativas "Só Nós - Uma Conversa Americana", da poeta e ensaísta jamaicana Claudia Rankine, irá se frustrar —e, acima de tudo, se sentir profundamente desafiado a olhar para sua própria brancura em um livro experimental que recusa o didatismo.

claudia rankine
A escritora jamaicana Claudia Rankine, que lança 'Só Nós' pela editora Todavia - NYT

Intercalando seus poemas e ensaios com dados estatísticos, prints de redes sociais, fotos perturbadoras, discursos de escravocratas e artigos e reportagens que evidenciam a violência antinegro ou as desigualdades raciais nos Estados Unidos, Rankine aposta na ideia de conversa —com todo o seu caos e imprevisibilidade— para provocar uma reflexão sobre os limites e possibilidades das relações entre negros e brancos.

Assim como a psicóloga Cida Bento nos desafia a pensar no pacto narcísico da branquitude, isto é, no silêncio estratégico e compartilhado sobre sua raça e seus privilégios, Rankine demonstra o quanto o racismo não é uma realidade exterior aos brancos, mas constitutivo de seu próprio modo de ser e estar no mundo.

A autora afirma que ser “branco é viver dentro de uma casa geminada, deixando de fora toda perda, exaustão, ofensa, exposição”, constantemente “esquecendo de se lembrar que vidas negras importam”.

Tensionando uma cínica inocência, Rankine rememora interações com pessoas brancas em que a palavra “racismo”, uma vez proferida por ela, parecia fazer os encontros ruírem e a tornava radical por simplesmente querer que nós, negros, “tenhamos uma vida”.

Diante disso, ela defende que há um investimento ativo dos brancos na recusa de enxergar e admitir o que de fato veem –uma história “terrivelmente opressiva e sangrenta”, sobre a qual possuem uma “responsabilidade inescapável”.

Influenciada por intelectuais negros como Saidiya Hartman e Frank Wilderson 3º, que abordam a sobrevida da escravidão em nosso presente e a violência antinegro como essencial à vida psíquica da modernidade, Rankine nos leva a refletir a respeito das formas de afeto, amizade e amor que podem ser erigidas entre pessoas negras e brancas —e também com outros grupos racializados.

Porém, o desafio não é imaginar e desejar relações que não reiterem o racismo, mas relações que incluam a consciência de dinâmicas históricas violentas como parte da construção da intimidade.

Isso envolve construir relações que comportem “todos os tempos”, especialmente o tempo da escravidão como um passado que assombra o presente, sem interditar um questionamento ético incontornável. “Haveria a possibilidade de um amor e de uma risada que vivessem fora da estrutura que nos uniu?”

Longe de oferecer um manual antirracista, Rankine convoca os leitores, sobretudo brancos, a enxergarem que o combate ao racismo envolve um gesto de coragem que vai além do reconhecimento de privilégios –ver como a sua vida e a sua “segurança atmosférica” dependem da violência contra pessoas negras, que ainda gritam “eu não consigo respirar”.

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