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'Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime' cutuca nosso machismo

Série documental denuncia olhar masculino da sociedade ao cruzar entrevista com depoimentos e reportagens

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Após ler a crítica do colega Rogério Pagnan, dei o play na série documental “Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime”, na Netflix, esperando adentrar um “deserto sem novidades” que “não consegue despertar comoção ou tirar o espectador do estado normal”.

Mas, para minha surpresa, o que encontrei foi uma construção narrativa sensível que fez fervilhar em mim um turbilhão de sentimentos. Desde o espanto em identificar semelhanças entre a forma como Marcos Matsunaga tratava Elize e a dinâmica tóxica de relacionamentos em que eu e tantas outras já nos vimos envolvidas, até a indignação por lembrar que vivo em uma sociedade em que ser mulher é uma desvantagem aparentemente intransponível.

Assim como na obra de Caravaggio Jesus coloca o dedo de um incrédulo são Tomé em sua ferida para provar que havia de fato ressuscitado, em “Era uma Vez um Crime” a diretora Eliza Capai bota o dedo na ferida do machismo da sociedade brasileira —mais aberta atualmente do que à época do crime— para provar, a quem ainda duvida, que ele não só é real, como está por toda parte.

Costurando com destreza uma entrevista exclusiva de Matsunaga a excertos da cobertura jornalística e depoimentos de repórteres, promotores, delegados, advogados de ambos os lados, especialistas, familiares, amigos e até líderes espirituais, a cineasta mostra que os parâmetros de julgamento em todos os setores são estruturados a partir do ponto de vista masculino.

O olhar dos amigos que responsabilizam Matsunaga pelo afastamento do marido de seu círculo social é o mesmo do reverendo que o aconselha a internar a mulher em uma clínica psiquiátrica quando, ao descobrir novas traições do marido, ela expressa o desejo de se divorciar.

O olhar da imprensa dedicado a julgar Matsunaga por já ter feito da prostituição seu sustento é o mesmo que naturaliza o fato de seu marido não só trair suas mulheres com prostitutas mas também atribuir notas a elas como quem classifica aplicativos.

O olhar da acusação que considera Matsunaga pequena e frágil demais para arrastar e esquartejar um corpo sozinha e defende o “golpe do baú” como única motivação possível para o crime é o mesmo da família de origem japonesa que descreve o marido como um tipo que toda mulher sonha ter e diz que, se seu pai soubesse do passado de Matsunaga, provavelmente nem sequer teria permitido o casamento.

O olhar que duvida da infelicidade de Matsunaga no casamento sob o argumento de que ela vivia uma “vida de princesa” regada a bolsas de grife é o mesmo do repórter especialista em polícia e segurança pública que reduz o início de sua história a uma versão de “Uma Linda Mulher” e não se propõe a ver que a função de um documentário não se reduz a apresentar novas evidências criminais.

Ao o apontar, Eliza Capai causa no público impacto semelhante ao provocado pelas obras de Caravaggio na assassina confessa, que citou o pintor barroco (que também tem suspeitas de homicídio na conta) como seu preferido, um misto de admiração e incredulidade.

Tudo isso em quatro episódios sagazmente conduzidos pela música-tema da série, uma versão da composição de Beethoven “Für Elise” —do alemão, para Elise, ou Elisa.

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