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Humor desbocado de François Rabelais ganha tradução com gírias atuais

Nova edição de textos do século 16 aproxima leitor contemporâneo das inovações e ousadias da obra original

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São Paulo

Excrementos, flatulência, urina, genitálias e vocabulário chulo são alguns dos eufemismos que não encontramos na obra de François Rabelais. As piadas e trocadilhos que recheiam os livros do autor francês recusam qualquer humor polido e decência que se convencionou à escrita –mas que esquecemos no falar cotidiano.

Esses trabalhos publicados originalmente no século 16, que chegam ao Brasil em nova tradução, ascenderam ao status de clássicos por serem capazes de, na contramão da seriedade, fazer um rebaixamento geral.

No primeiro volume das obras completas, recém-publicado pela editora 34, encontramos seus livros mais célebres, “Pantagruel” e “Gargântua” –as aventuras de dois gigantes, filho e pai, que chafurdam no grotesco e na abundância dos prazeres da carne e da mesa, criticando o poder e a Igreja de então.

Aguarde releituras amalucadas do dilúvio bíblico, uma criança que sorve o leite de 4.600 vacas por refeição, personagens de nomes como Bocaberta, Beijacu e Chuparrabo, um mundo inteiro dentro de uma boca e deboches à erudição –sem deixar de ser profundamente intelectual.

“Rabelais curto-circuita elementos de instâncias muito variadas –cristã, erudita, popular, política, metafísica, trivial”, conta Ana Cláudia Romano Ribeiro, poeta, tradutora e professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo.

São cruzamentos que refletem a própria biografia do autor. Monge franciscano e depois beneditino, Rabelais teve acesso aos estudos graças ao seu ingresso na ordem religiosa.

Anos depois, abraçou a apostasia, foi pai de três filhos e se tornou médico. Não abandonou sua fé, mas criticou as superstições e o controle social da Igreja, recuperando elementos das festas populares e da língua viva das ruas, que mantinham um vínculo do riso com o sagrado.

“Rabelais parecia fascinado tanto pela linguagem viva, renovada pela redescoberta da cultura antiga, de novos territórios em novas geografias, quanto pelo funcionamento da linguagem que ele critica, a linguagem morta de seus detratores”, afirma Ribeiro.

Nessa visão, a figura dos gigantes que protagonizam os livros servem como metáfora do intelectual humanista que compreende a natureza e também é capaz de rir. Para entender esse caráter transgressor para a época, basta saber que havia debates sobre se rir era adequado ao homem cristão, visto que Jesus não riu uma única vez em sua vida.

Com “Gargântua” e “Pantagruel”, o leitor se vê integrado à gozação, convidado a celebrar a gargalhada. “O riso de Rabelais é desbragado e perigoso”, aponta Guilherme Gontijo Flores, tradutor da nova edição. “Ele flerta com o popular, com a violência, não se furta a jogar palavrões, escatologia, e traz uma potência devastadora e fertilizadora”.

Poeta e professor da Universidade Federal do Paraná, Flores diz que a comédia do autor humanista sempre sofreu preconceito por seu mergulho radical num gênero menos valorizado. Seu tipo de humor é visto com olhos diferentes daquele de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, por exemplo, que tem um aspecto “civilizado, metaliterário e se reconhece como uma paródia das novelas de cavalaria”.

Ainda assim, o caráter excessivo das histórias de Rabelais aparece ainda hoje em nossa cultura, seja pelo adjetivo "pantagruélico" –em referência a banquetes abundantes –, seja em referências pop, nomeando, por exemplo, um buraco negro do filme "Interestelar", de 2014.

Mesmo que Rabelais não economize referências literárias –misturando e inventando idiomas, parodiando obras em latim, grego e hebraico– nem alusões políticas que não seriam fáceis nem aos intelectuais de então, grande parte da risada era acessível a diversos níveis de leitores.

Não à toa, os livros assinados por Alcofribas Nasier –um anagrama do nome do autor, que funcionava ao mesmo tempo como pseudônimo e narrador-personagem– foram censurados diversas vezes pela Sorbonne e pelo Parlamento francês, o que até ajudou os livros a serem uma espécie de best-seller na época.

O sucesso foi tanto que rendeu até livros piratas e obras anônimas com seus personagens, espécie de tataravós das atuais fanfics.

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Retrato do médico e escritor renascentista francês François Rabelais (1483-1553) - Pintor anônimo/Reprodução

“Havia uma prática recorrente de ler livros coletivamente. Com isso, podemos imaginar sua obra se comunicando com o povo não letrado quando alguém alfabetizado lia para um grupo que não era”, conta Flores.

Ele destaca ainda que os chistes e trocadilhos do livro são percebidos pelo olho do leitor, mas também impactam os ouvidos. “Rabelais faz uma literatura da voz.”

Até então no Brasil, a obra de Rabelais ganhou algumas edições, mas um pouco lacunares. A tradução de David Jardim Júnior para “Gargântua” e “Pantagruel” traz a diversão, mas tem muitas imprecisões e pouco material crítico. Há também disponíveis o terceiro e quarto livros de Pantagruel, com tradução de Élide Oliver, que são bem mais apurados, em tradução comentada e anotada, mas é mais cerebral, menos voltada para a comédia do que na exploração das raízes das palavras.

O desafio de Flores foi recriar o clima original do humor de Rabelais para a atualidade. Ele recorreu aos mais diversos artifícios, desde usar palavrões e gírias modernos, até empregar expressões como cheesecake, ou citar “Meu Irmão Camarada”, de Roberto e Erasmo Carlos, ao transpor uma referência a uma cantiga popular do século 16.

Além disso, para possibilitar a fruição das referências históricas de meio século atrás, o poeta pesquisou edições estrangeiras para produzir notas na abertura de cada capítulo, dando explicações e justificando escolhas.

Só o primeiro volume contém mais de uma centena de ilustrações de Gustave Doré, produzidas pelo pintor no século 19 e que refletem o próprio nonsense da obra, desrespeitando aparências e proporções –como fazem os protagonistas.

Os outros dois volumes da obras completas de Rabelais –previstos para o final deste ano e o primeiro semestre de 2022– incluirão as três continuações das histórias de Pantagruel, além de diversos escritos ainda inéditos em português.

Pantagruel e Gargântua (Obras completas de Rabelais - 1)

  • Preço 448 págs. (R$ 87)
  • Autoria François Rabelais
  • Editora Editora 34
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