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Livro humaniza Beatriz Nascimento, historiadora vítima de um feminicídio

Coletânea reúne obra da intelectual negra, que se tornou um tesouro do pensamento brasileiro

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Tulio Custódio

Sociólogo e curador de conhecimento na empresa Inesplorato

É tempo de outros olhares. É tempo de novas percepções sobre olhares que já existiam, mas estiveram apagados. É tempo para vozes como a de Beatriz Nascimento.

Nascimento foi intelectual, historiadora, professora, poeta e ativista antirracista. Produziu uma relevante contribuição em temáticas sobre questões raciais e culturas negras, com uma trajetória marcada pela pesquisa, ensino, produção de textos e participação no documentário "Ori", de Raquel Gerber.

Sua bela trajetória foi tragicamente interrompida com apenas 52 anos, em 1995, por causa de um feminicídio, assassinada ao tentar defender uma amiga de um namorado agressor.

A publicação do livro "Uma História Feita por Mãos Negras" com textos de Nascimento, organizado pelo pesquisador Alex Ratts, vem em bom tempo.

Beatriz Nascimento sorri
A historiadora e ativista antirracista Beatriz Nascimento, no documentário 'Ori' - Reprodução

Primeiramente pelo trabalho do organizador. Ratts imprimiu uma sensibilidade intelectual à trajetória de Nascimento, dando um sentido especial para nos relacionarmos com sua contribuição. Diferente do costume de fazer um percurso vida-obra quando se resgata trajetórias intelectuais, Ratts reorganiza a cronologia dos textos a partir de uma perspectiva obra-vida, propondo que nos relacionemos com a produção de Nascimento por meio de quatro eixos temáticos.

Ao fazer isso, com uma bela introdução crítica, Ratts percorre um caminho orgânico da intelectual, que é de uma vida que produz não por datas, mas por sentidos e ação no mundo.

A organização de Ratts segue, portanto, uma lógica generosa de apresentar um percurso de pensamento e produção, humanizando a trajetória intelectual de Nascimento em seu próprio tempo e ritmo.

O livro também é importante por ser tempo de revelarmos e darmos mais visibilidade à produção de intelectuais negros, apagados por tanto tempo pelo descaso e desprezo sofridos por parte das elites. Beatriz Nascimento é um dos tesouros intelectuais que possuímos na história do pensamento social brasileiro, e essa nova publicação evidencia isso.

Vale lembrar que houve esforços anteriores, como do próprio Ratts com "Eu Sou Atlântica: Sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento", de 2007, e a bela compilação da produção da intelectual em "Beatriz Nascimento: Quilombola e Intelectual, Possibilidade nos Dias da Destruição", organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas em 2018.

A edição de agora ainda nos brinda com um texto inédito, "Kilombo", escrito nos últimos anos de vida da autora e que ainda não tinha encontrado publicação.

Sabemos, desde Abdias do Nascimento, que o apagamento do pensamento e da produção cultural negros também são formas de reprodução da morte do povo negro —desaparecido fisicamente com a violência e também simbolicamente quando seus pensadores são ignorados. Ter acesso a essa produção e demonstrar a riqueza que pensadores negros possuem é algo com que temos todas e todos a ganhar.

E por fim, é tempo deste livro porque ele traz um olhar especial sobre o tempo no qual foi construído, ou seja, do pensamento de Nascimento localizado no debate historiográfico e político dos anos 1970 a 1990.

Nascimento traz um retrato sofisticado e generoso —com a didática de professora e intenção de compartilhar conhecimento como uma intelectual— do diálogo com pensamento e referências, oferecendo uma crítica qualificada às limitações do pensamento acadêmico mainstream sobre questões raciais e a história do povo negro.

A autora nos convence e ensina sobre a necessidade de recompor teórica e metodologicamente uma nova história do negro brasileiro, uma história que parte do princípio da integralidade, do todo, e não dos fragmentos e distorções.

Por exemplo, ela propõe reflexões sobre quilombos dedicando um olhar não apenas à ideia de insurgência, mas principalmente de resistência, oferecendo a possibilidade de compreender o quilombo como um instrumento vigoroso para reconhecimento da identidade negra. Quilombo como símbolo de resistência e organização, portanto não algo preso ou parado no tempo, mas uma perspectiva para construção de horizonte de expectativas para luta.

Por tudo isso, e mais a ver, esse livro está em seu tempo. É tempo de enxergarmos outros olhares. É tempo de reconhecermos e homenagearmos a potência de vozes e contribuições como de Nascimento, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Sueli Carneiro, enquanto inspiração de todos e todas, para construção do presente e do futuro. É tempo de excelência, inteligência e luta. São os tempos de Nascimento.

Uma História Feita por Mãos Negras

  • Preço R$ 54,90 (272 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autor Beatriz Nascimento (org. Alex Ratts)
  • Editora Zahar
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