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Sikêra Jr. quis ser Chacrinha e acabou rei do mundo cão com melô do CPF cancelado

Acusado de homofobia, apresentador bolsonarista perde patrocinadores e diz que é alegria quando vagabundo morre

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Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho Adams Carvalho

São Paulo

Na juventude em Palmares, na zona da mata pernambucana, José Siqueira Barros Júnior queria ser Chacrinha, ou ainda melhor, uma mistura do Velho Guerreiro com Silvio Santos.

Na rádio Cultura, onde começou aos 14 anos, apresentava um programa musical aos domingos em que atendia pedidos de ouvintes, contava piadas e segurava no gogó quatro horas de programação, das oito da manhã ao meio-dia. Alternava o emprego na rádio com o de locutor de alto-falantes no comércio, anunciando ofertas em lojas.

“Ele era um ótimo disc-jóquei. Dizia que queria ser artista, cantava nas festas de jovens. Já era uma pessoa muito irrequieta”, diz Douglas Marques, de 78 anos, dono da emissora desde aquela época.

Quatro décadas depois, Siqueira virou Sikêra Jr., um fenômeno no gênero televisivo do mundo cão. Em apenas quatro anos, migrou de um programa regional em Alagoas para outro em Manaus, e de lá para a fama nacional.

Aos 55 anos, à frente do Alerta Nacional, retransmitido pela RedeTV!, ele se tornou uma voz estridente em prol de valores conservadores e um defensor fiel do presidente Jair Bolsonaro. Da capital amazonense, onde comanda o programa desde o início do ano passado, Sikêra repete a receita consagrada do gênero, com exaltação ao trabalho da polícia, defesa da linha dura contra criminosos e críticas aos defensores dos direitos humanos.

Também louva a família tradicional e se insurge contra o que parece ameaçar esses valores, sem se preocupar com as consequências.

Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

No último dia 25 de junho, ele se envolveu em sua maior polêmica, ao criticar uma propaganda da rede Burger King, em que crianças falam das diversas formas de famílias hoje existentes, como as compostas de homossexuais. “A gente está calado, engolindo essa raça desgraçada que quer que a gente aceite que a criança... Deixe as crianças, rapaz!”, bradou.

A reação foi imediata em redes sociais, e o apresentador perdeu diversos patrocinadores, o que o obrigou a fazer uma retratação pública, que repetiu em entrevista a este repórter na última quinta-feira. “Eu trabalho com um monte de gays, eles frequentam a minha casa. Tenho lésbica no estúdio trabalhando comigo. Agora, que eu estourei, estourei. Que eu pipoquei, pipoquei. Desci a ladeira sem freios. Isso aí eu assumo. Exagerei lindo.”

A crítica, diz Sikêra, não foi aos gays em si, mas ao que ele vê como “uso” das crianças para avançar uma agenda contrária à família. “É uma estratégia velha, baixa, nojenta, de começar a mexer com a criançada. Quando eu me refiro a raça desgraçada, eu me refiro a quem usa a criança, abusa de criança. O cara que criou aquela campanha é uma raça desgraçada, isso eu digo de novo”, afirma.

Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

A verborragia deverá render dores de cabeça ao apresentador. Uma coalizão de movimentos LGBT acionou o Ministério Público Federal acusando Sikêra de homofobia. “Ele conseguiu unificar o movimento gay, que é muito diverso”, diz Toni Reis, diretor-presidente da Aliança LGBTI+.

“Somos favoráveis à liberdade de expressão, desde que não fira a dignidade humana. Não é civilizado você tratar uma comunidade como nojentos, degenerados. Nesse discurso de ódio, o Estado brasileiro tem de intervir, tem de ter os freios da civilização”, afirma Reis.

Durante sua carreira, Sikêra, de uma certa forma, realizou ao menos em parte o sonho de ser um animador de auditório. “Queria ser Silvio Santos com Chacrinha, misturado os dois. Eu queria fazer auditório, festa, alegria, jogar bacalhau”, diz ele.

Um dos diferenciais de seu programa é o fato de ter conseguido unir o escracho dos programas de auditório ao jornalismo policial do estilo “prende e arrebenta”. É como um José Luiz Datena com pitadas de "Casseta & Planeta".

Com uma hora e meia de duração, o programa chega a atingir picos de três pontos de audiência, uma façanha para a emissora. É uma sucessão de reportagens policialescas, discursos indignados do apresentador e momentos lúdicos, que incluem musiquinhas, danças bizarras e brincadeiras com assistentes de palco fantasiados de jumento ou chinês.

Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

Um exemplo é a performance “CPF Cancelado”, em que integrantes da equipe do programa desfilam pelo palco carregando cartazes com essa expressão, usada por policiais e milicianos para se referir a criminosos mortos. O próprio presidente Bolsonaro, em visita ao programa em abril, posou para foto com a imagem.

Esse momento do programa em geral acompanha alguma reportagem em que um acusado de ser criminoso é morto pela polícia. Há também um jingle, que diz “CPF cancelado, que coisa boa, CPF cancelado pra alegria do coroa; CPF cancelado, daqui a pouco tem mais, vamos encher de bandido a casa de Satanás”.

Sikêra afirma que usa o humor porque “o povo não aguenta ver mais sangue”. “É muita desgraça. É por isso que o Jornal Nacional está na merda que está. [Imita a voz de William Bonner] ‘Morreram mais cem, e amanhã vai mais cem. Morreram mil, sábado vai para 1.500, e a previsão é que domingo tenha 2.000’”, afirma.

Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

Segundo ele, o alívio cômico é feito pensando no horário em que o programa é transmitido, das seis da tarde às sete e meia da noite. “Todo controle remoto, quando você aperta, mela a sala de sangue. Eu dou um pouquinho de humor para ficar leve, porque crianças assistem ao programa. Aquele horário é terrível, tem toda idade assistindo”, diz.

Mas ele não vê problema no fato de crianças assistirem a um programa que celebra abertamente a morte de criminosos. “Quando vagabundo morre é alegria”, justifica. “Sobra vacina, sobra comida na cadeia, é menos custo para mim e para você.”

Outro hit é o “Reggae do Maconheiro”, que inclui o verso “el, el, el, todo maconheiro dá o anel”, e já teve participação especial do senador Flávio Bolsonaro, do Patriota do Rio de Janeiro, e do deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PSL de São Paulo, no estúdio fazendo coreografia com o apresentador.

Embora Sikêra tenha encontrado uma linguagem original para seu jornalismo mundo cão, o Alerta Nacional e a versão local apresentada por ele, o Alerta Amazonas, da TV A Crítica, seguem uma linhagem de décadas de programas policialescos.

Veiculado pelo SBT na década de 1990, o Aqui Agora é a principal referência desse gênero, que tem também o Cidade Alerta, da Record, o Brasil Urgente, da Bandeirantes, e o extinto Linha Direta, da Globo, entre outros.

“A popularidade desses programas tem a ver com uma certa dificuldade do jornalismo de TV de acompanhar a pauta de segurança no Brasil em sua complexidade, que abre caminho para discursos simplistas que esses apresentadores dominam”, diz o professor Vitor Blotta, coordenador do grupo Jornalismo, Direito e Liberdade da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

Segundo ele, apresentadores como Sikêra, Datena e Marcelo Rezende, morto em 2017, se especializaram em criar uma relação de compadrio com o espectador. “A linguagem tem a coisa de proximidade, de falar diretamente com o público e criar uma relação de conversa com um policial. E também tem uma ritualística de igreja, de gesticular como pastor, levantar os braços, como se fosse uma pregação”, afirma Blotta, que pesquisa o tema.

No caso de Sikêra, o jeito debochado se somou a isso. É em parte decorrência de uma faceta menos conhecida dele, a de "entertainer". Em 2017, quando ainda trabalhava numa emissora alagoana, ele viralizou ao surgir no palco dentro de um caixão, depois de ter se recuperado de um infarto sofrido meses antes.

Naquele mesmo ano, foi “descoberto” pelo apresentador Danilo Gentili, que o chamou para participar de seu programa de entrevistas no SBT. Em 2018, por indicação de Gentili, Sikêra fez parte do filme “Exterminadores do Além Contra a Loira do Banheiro”, comédia trash que mistura escatologia e horror.

Dirigida por Fabrício Bittar, tem Gentili e a humorista Dani Calabresa como protagonistas mais conhecidos. Sikêra encarna Nogueira, diretor da escola onde se desenrolam os fatos. O filme em geral recebeu críticas negativas. Procurado, Bittar não deu resposta aos pedidos de entrevista.

Sikêra Jr. em ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

Nas filmagens, Sikêra aparecia com a família e ficava fazendo piadas e reclamando da repetição incessante de gravações da mesma cena. “Até onde eu me lembro, havia muitos homossexuais na equipe e não foi um problema para ele”, afirma um dos integrantes do elenco, que não quis se identificar.

Sikêra considera Gentili uma espécie de padrinho de sua ascensão a celebridade nacional. Hoje um opositor radical de Bolsonaro, o apresentador do SBT também foi procurado, mas não deu resposta.

Além da curta carreira cinematográfica, Sikêra também ataca de roqueiro. É o vocalista da banda Manicômio, que toca covers de rock nacional como RPM, Engenheiros do Hawaii, Titãs e Mamonas Assassinas.

No ano passado, a banda fez duas lives, que juntas somaram mais de 850 mil visualizações no YouTube. Uma delas começou com a remixagem de uma fala do médico Drauzio Varella do começo da pandemia, em que minimizava o risco da doença —Drauzio depois mudou sua avaliação sobre o risco da Covid-19.

São cinco integrantes, entre eles um delegado, Demetrius de Queiroz, da Delegacia Especializada em Roubos e Furtos da Polícia Civil do Amazonas, que toca guitarra.

“Nossa ideia é, quando todos no país estiverem imunizados, sairmos em turnê e eventualmente gravarmos um DVD. Nosso show é diversão garantida. Já temos uma música single em processo de finalização, logo a lançaremos”, diz o baixista Cayo Felipe, também produtor musical da banda.

Segundo ele, a imagem que se faz de Sikêra, de uma pessoa preconceituosa, sobretudo com relação aos gays, é equivocada. “Te digo que grande parte das pessoas que trabalham lá [na TV] são homossexuais e todos, sem exceção, o amam. Só conhecendo pessoalmente se pode ver o ser humano incrível que ele é e o tanto de amor que ele carrega”, afirma Felipe, de 39 anos, que considera Sikêra um segundo pai.

A polêmica causada pela declaração contra os gays, no entanto, fez balançar a situação do apresentador na RedeTV!, segundo relatou a coluna Notícias da TV, do portal UOL. Ele tem contrato de sete anos, um dos mais longos da TV brasileira.

Sobre o caso, a emissora soltou uma nota dizendo que “reprova veementemente todos os tipos de discriminação e preconceito e vem a público manifestar condenação a qualquer expressão de homofobia”.

Alinhada ao governo federal, a RedeTV! reluta em dispensar um apresentador que tem ligação umbilical com o presidente. No caso da polêmica com os gays, ele foi defendido por diversas vozes bolsonaristas. Um deles foi o deputado estadual Douglas Garcia, do PSL de São Paulo, que é homossexual e diz não ter se sentido ofendido pelas declarações do apresentador.

“Sikêra é extremamente popular na base conservadora. Ele consegue se comunicar de forma que o povão entenda, assim como faz o próprio presidente. Fala para o tiozinho conservador que está sentado no risca-faca [boteco] da esquina”, afirma Garcia.

Questionado se considera ter uma relação de amizade com o presidente, Sikêra responde sem vacilar. “Tenho, sim, desde antes de ele ser presidente. Poderia tirar muito proveito disso e nunca tirei”, afirma.

Em pelo menos uma situação, no entanto, essa proximidade foi lucrativa. Conforme reportagem deste jornal mostrou, ele recebeu R$ 120 mil do governo federal para realizar campanhas publicitárias, entre elas a defesa do chamado “tratamento precoce” contra a Covid-19, que é comprovadamente ineficaz.

“Fizeram aquela graça, de que ganhei R$ 120 mil em seis meses, ficam procurando revirar a minha vida. Querem achar alguma coisa, ‘Sikêra passou um sinal vermelho’. É natural, eu meto o pau. Como eu falo bem, eu falo mal”, afirma.

A amizade com o presidente, diz, não o impede de ser crítico também. “Já critiquei [Bolsonaro] pessoalmente, olho no olho. Eu disse a ele 'presidente, o senhor disse que é atleta, e a gente que não é atleta, nós estamos fodidos?'. Mas ninguém vê, lamentavelmente”, diz.

Em maio do ano passado, o apresentador teve Covid, e ao retornar ao programa, reconheceu que havia subestimado o impacto da doença. Mesmo assim, Sikêra aprova o desempenho do presidente no combate à pandemia e diz que apoiará a reeleição de Bolsonaro, que, segundo ele, faz um governo “maravilhoso”.

Sobre a responsabilidade do governo federal na morte de mais de 500 mil pessoas no Brasil e as acusações de negligência na compra de vacinas, ele responde com ironia.

“É, realmente foi ele que criou o vírus, deve ter atrapalhado também os Estados Unidos, Canadá. Bolsonaro acabou com o planeta, porque vou dizer, viu. O bicho é o cão mesmo. Olhe, esse vírus que ele espalhou acabou com o Brasil e com o mundo todinho”.

Sikêra se define como conservador e cristão, embora afirme não seguir nenhuma igreja específica. “Só vou à igreja em casamento, porque sou obrigado a ir. Minha religião é Jesus Cristo, meu salvador, minha vida, que me dá forças”, afirma.

Diz que tem uma família “bem boa, estruturada”. “Pense numa família tradicional, bem cuidada, tudo no Toddynho, no iogurte, no Danone”. São quatro filhos, um dos quais de quatro anos.

Antes de enveredar pela área policial, quando vivia em Maceió, ele trabalhava numa emissora de TV fazendo um programa que anunciava imóveis. Caiu na cobertura de crimes por acaso, quando surgiu uma vaga que precisava ser preenchida com urgência.

“O diretor de programa me prometeu que eu não ia fazer cadáver. E a primeira matéria que ele mandou foi lá ver o cadáver, o cabra todo esfaqueado. Vomitei o dia todinho”, lembra. Hoje diz que se acostumou com sangue dos outros. “Odeio ver sangue derramado, o meu”, afirma.

Como muitos influenciadores da direita, ele se diz vítima de perseguição e de censura, embora afirme que entenda a decisão dos patrocinadores que o deixaram, após uma campanha feita pelo perfil Sleeping Giants. Foram quase 20, incluindo MRV, Nivea, Ford e Magalu.

“Natural, quem é que quer ficar num tiroteio cruzado? Eu entendo. Tudo no Brasil é hashtag, isso passa. Daqui a pouco é fogo na Amazônia, é Lázaro [Barbosa], vai ter outro assunto. Vão surgir campanhas e mais campanhas, é vidas negras importam, viva [George] Floyd, Marielle presente”, diz.

Ele se mostra resignado com a perda de receita, mas confiante de que vai recuperar o prestígio com os patrocinadores. Afinal, diz, já viveu situações bem piores.

“Passei dois anos desempregado morando em barraca de feira em Maceió, dormindo no meio da rua. Nunca imaginei ter uma casa própria. Eu não casaria comigo mesmo, eu não tinha futuro. Eu era um fracassado”, afirma.

Antes de encerrar a entrevista, Sikêra pede que seja registrado um apelo para que a imprensa mude de atitude. “No dia em que a imprensa brasileira for verdadeira com o seu povo, jamais vai deixar se corromper. Ninguém vence a gente. Seremos muito fortes.”

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