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Teatro inventa um BBB macabro com peça em que morrer é o prêmio máximo

Obras como a americana 'The Kill One Race' e a brasileira 'ExReality' mostram como lógica dos realities invadiu o palco

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Atores em palco de teatro em contraluz

Cena de 'The Kill One Race', peça virtual que ironiza a cultura de reality show e é apresentada em oito episódios Kate Enman/Divulgação

São Paulo

Estranhos escaparam de suas vidas ordinárias, foram parar numa casa isolada e compartilham um único desejo —competir um com o outro para ganhar votos. A cena de abertura podia ser a do Big Brother, de RuPaul's Drag Race, de A Fazenda ou de qualquer um dos reality shows que tomaram conta da televisão aberta e das plataformas de streaming.

"The Kill One Race", na verdade, é uma peça de teatro virtual que ironiza esse universo de game shows em que estamos mergulhados. E o prêmio para quem ganhar essa disputa, marcada por desafios éticos, é morrer.

O espetáculo, que fica disponível até o dia 31 de julho, se junta ao brasileiro "ExReality", apresentado na programação do teatro Porto Seguro no ano passado, na proposta de discutir se as redes sociais incorporam as tendências da cultura de reality —ou se são as postagens incessáveis na internet que estão alterando a cara dos programas.

"A televisão e a cultura pop são as primeiras coisas que vejo quando começo a minha pesquisa", afirma o diretor de "The Kill One Race", Raja Feather Kelly. "É onde vou para entender como o mundo está processando tudo, o amor, o sexo, a ética, a dor, a violência, a raça, classe, gênero."

​E dessa lista extensa que Feather Kelly elenca, a que guia a peça é especialmente a ética. Os participantes passam por provas com simulações criadas com especialistas de Harvard. Sacrificar uma pessoa para salvar outras cinco de um acidente, por exemplo, é um dos debates que o grupo precisa enfrentar e pelo qual mostram sua personalidade —e, claro, nisso são julgados por seus concorrentes.

"Me parece que existe uma fórmula que o reality cria para como nós interagimos uns com os outros, e nós pegamos essa fórmula. Quando eu assistia às pessoas participando nas mídias sociais —Instagram, Facebook, TikTok—, começou a me parecer a mesma dinâmica dos programas", afirma o diretor. "Então voltei a essa questão --nós estamos criando a fórmula para os realities e para a cultura pop, ou isso está criando o jeito com que interagimos uns com os outros?"

E "The Kill One Race" não só fala com reality, mas também age como tal. A peça é apresentada como uma série em oito episódios, de cerca de 40 minutos, gravados no palco do Playwrights Horizons, em Nova York, com ambientes marcados no chão como no celebrado "Dogville", filme de Lars Von Trier.

Um apresentador guia o público pelas provas, os participantes dividem suas angústias numa filmagem caseira, quase como num confessionário, e reforçam clichês da juventude de hoje—como um sujeito preocupado com o meio ambiente ou um jovem que ainda não se encontrou e parece viver um tanto à deriva.

"Com a falta da ficção inédita na televisão na pandemia, as fronteiras entre a ficção e a realidade são bem trabalhadas em programas de reality", avalia Ligia Prezia Lemos, pesquisadora em comunicação na Universidade de São Paulo. Essa série de programas como o Big Brother Brasil e De Férias com o Ex, nas grades da televisão aberta se relaciona, claro, com a falta de novelas inéditas nas telinhas brasileiras.

"Ele cria heróis, vilões, trabalha com os dramas do ser humano, de inveja, ciúme, sensação de justiça, simpatia, antipatia, repulsão, esses dramas humanos de que a gente gosta."

É nesse formato de trazer pessoas comuns para a tela e misturar a realidade com entretenimento que a peça "ExReality", da ExCompanhia de Teatro, opera, com atores que vivem personagens com seus próprios nomes e estão em busca de uma razão de viver.

Nessa espécie de site com rede social, em que o público podia interagir 24 horas por dia, Daniel, o apresentador, ironiza a concorrente eliminada. Ele informa que o público a viu como um sujeito descartável, ou que ela não cumpriu com a expectativa dos que estavam assistindo ao programa de casa. E a eliminada, menos sutil ainda, começa um discurso emocionado que descamba com um dedo direcionado aos que a tiraram do programa.

"Fizemos o projeto já sabendo do esgotamento ou da pouca possibilidade de experiência dentro do espaço online", diz o diretor do projeto, Gustavo Vaz. "Então começamos a pensar o que estamos vivendo hoje, e a gente percebeu que estamos todos vivendo um grande reality há um tempo. Eu estou vendo você, de dentro da sua casa", diz ele, em referência à tela de Zoom, pela qual fizemos a entrevista.

A atriz Bárbara Salomé integra o elenco de ExReality, espécie de reality show criado pela ExCompanhia de Teatro
A atriz Bárbara Salomé integra o elenco de ExReality, espécie de reality show criado pela ExCompanhia de Teatro - Patricia Cividanes/José Sampaio/Divulgação

Ele e o ator Daniel Warren, que vivia o apresentador de "ExReality", contam até que o grupo começou a se enredar na proposta do espetáculo e se questionava por que em determinado dia o público não deu tanta atenção ao candidato ou não votou em peso para que permanecessem na competição.

A plateia também tinha acesso a tudo que acontecia no celular dos participantes e podia votar em enquetes que geravam espécies de castigos para os atores. "Quando percebemos, eles estavam sendo quase tiranos com os atores em alguns momentos, e não se importavam, ou não percebiam isso, numa dinâmica de curtida e de votação", diz o diretor.

Criar um espetáculo baseado na cara de um reality pode ser também um novo chamariz de público. "A audiência não tem muito essa noção, mas o que eu percebo é que no teatro e mesmo na ficção televisiva há um desejo de realidade.É como se a realidade se afastasse da gente, e temos esse desejo. E o reality nos aproxima dessa realidade", diz Prezia Lemos, a pesquisadora.

Segundo os integrantes da ExCompanhia de Teatro, isso já era uma questão desde pelo menos 2012, quando criaram "Eu Negociando Sentidos", que partiu de uma discussão sobre onde estavam as pessoas se não no teatro —e a resposta, lá, já era na internet.

"Você não pode substituir o teatro com a televisão, a não ser que você vá competir com a televisão e com as telas nas regras da própria televisão", afirma Raja Feather Kelly, sobre esse formato. "A pandemia aumentou nosso desejo por interação, por sensações, pelo drama, e o único lugar a que podemos ir já que não estamos lá fora criando é a TV, são as mídias sociais."

The Kill One Race

  • Quando Até 31/7
  • Onde Na programação do Playwright Horizons, pelo site thekillonerace.com/episodes
  • Direção Raja Feather Kelly
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