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Leandro Pardí

Cinemateca vira cinzas enquanto tentam restaurar o Borba Gato

Estamos vendo morrer aquilo que podia ser salvo, esmagando a nossa própria memória e futuro

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Leandro Pardí

É ex-coordenador de difusão da Cinemateca

São tempos em que se faz necessário dizer o óbvio. Estamos vendo morrer, queimar o que se podia salvar —e esse processo, além de dolorido, nos obriga a recordar e pautar uma questão que era diária por lá, a memória.

Memória é fundamental para que um país possa existir. Sem memória não temos como nos agrupar, não há passado para congregar valores. Uma nação é feita por um acordo amplo de memória, sobre acontecimentos, conceitos, valores, hábitos, datas, jeitos de fazer, costumes e tudo aquilo que, reunido, chamamos de cultura. Esse todo que deve ser preservado para permanecer uma noção de identidade brasileira.

Quando se abandona essa pauta —ou não se faz da memória um território vivo e orgânico a partir do qual a nação possa debater incessantemente sobre o que ela quer, o que ela é, para onde ela vai, quais são seus valores—, nós nos tornamos frágeis, estamos morrendo enquanto nação.

Fui obrigado a ler, vindo do excelentíssimo secretário da Cultura, que o incêndio na Cinemateca foi ‘’herança maldita do petismo’’. Pois não foi. É necessário implementar políticas públicas para a preservação —e não há políticas públicas sem investimento compatível.

Desde que a Cinemateca passou a ser administrada via organização social, em 2018, lá se foram três ministérios —da Cultura, da Cidadania e do Turismo—, além de oito responsáveis pela pasta cultural —sempre bom lembrar que um deles foi afastado por copiar um discurso nazista— e mais sete responsáveis pela Secretaria do Audiovisual.

Isso tudo sob um contrato de gestão interveniente, um apêndice de outro ministério, o da Educação —ainda sob comando de Abraham Weintraub, que sempre deixou clara sua perseguição ideológica.

Essa descontinuidade, essa dança de poderes nefasta que leva do nada a lugar nenhum deixou, é claro, a instituição apenas com o pum do palhaço. E olhe lá. Em 75 anos de Cinemateca, este é o quinto incêndio, o primeiro fora do depósito de nitrato.

Creio cada vez mais que as cinematecas, estas que guardam nossas memórias em movimento, são microcosmos da sociedade em que estão inseridas. Agora não conseguimos nem dizer rapidamente o que de fato foi perdido, não há equipe para tal avaliação, é preciso todo um processo burocrático do Estado para iniciar alguma contratação emergencial.

Acredito que estamos no momento oportuno para nos depararmos com a história e nos confrontarmos com ela. Confrontar para impedir que apagamentos como este se repitam.

O chamamento para nova gestão da Cinemateca, publicado um dia depois do incêndio, é a certeza da repetição de uma política pública falida. Promover recursos insuficientes até para o custeio básico da instituição é condenar essa instituição ao mesmo processo degenerativo que a levou aos últimos dois incêndios de sua história. Questiono também se o Ministério do Turismo e seus dirigentes têm a capacidade de entender as reais necessidades e a complexidade de um órgão como a Cinemateca.

Jovem segura cartaz, onde está escrito "quem pôs fogo na cinemateca?"
Coletivo Para Todos, formado por jovens estudantes do Partido dos Trabalhadores, faz protesto em frente ao prédio da Cinemateca que pegou fogo na noite de 29 de julho de 2021 - Zanone Fraissat/Folhapress

Em 2016, a Cinemateca não recebeu doações da sociedade civil para a reforma do acervo de nitrato. Nenhuma. Pontuo isso porque já vejo alguns setores se organizando para restaurar o Borba Gato.

Apavorante pensar num futuro no qual não narremos o dia e os porquês da Revolução Periférica queimar o Borba Gato, ou que inventem supostas heranças malditas para justificar a perda de filmes e documentos históricos que foram queimados e que jamais serão recuperados.

Para concluir esse raciocínio, parafraseio a professora Rita Von Hunty, que em um de seus vídeos no YouTube questiona justamente o apagamento da memória que não é interessante. O ponto é justamente se questionar. Interessante para quem? Quem define o conceito? A quem prestamos homenagens hoje em dia, a quem se endereçam nossos monumentos, como está a situação dos acervos no país? Qual o projeto de nação que isso tudo representa? Qual o projeto civilizatório?

Há uma tarefa para todos nós. São tempos em que se faz necessário dizer o óbvio, é tempo de a sociedade e os poderes se articularem —mas, principalmente, passarmos da hora de criar a tradição da memória, de pensar no direto das gerações futuras e valorizar o acesso da população a qualquer espaço para esta reflexão. O direito a incorporar, debater, reivindicar e reinventar memórias que são coletivas.

Falando nisso, neste sábado haverá manifestação, em frente à Cinemateca.

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