Descrição de chapéu Games tecnologia games

Entenda por que games têm voltado ao velho lápis e papel mesmo com alta tecnologia

Jogos como 'Mundaun' representam um novo passo na histórica relação entre quadrinhos e videogames

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

mundaun

Cena do game 'Mundaun', feito pelo suíço Michel Ziegler com papel e lápis Divulgação

São Paulo

“Mundaun” é um game criado a partir de rabiscos no caderno de um artista. Os gráficos do jogo foram desenhados a lápis pelo suíço Michel Ziegler. Lançado em março, o jogo é decorrente de sete anos de trabalho. O resultado é uma estética que remete ao quadrinho autoral e representa um novo passo na histórica relação entre gibis e games.

Quadrinhos e videogames constituem dois pilares da chamada cultura nerd. Games e gibis dividem lojas, eventos, mídia especializada e público. Em momentos distintos, as duas linguagens foram atacadas por perverter os jovens e até hoje lutam para provar que são mais que um entretenimento vazio.

O relacionamento começou nos anos 1970. Nessa época o videogame estreava em máquinas de fliperama nos bares e consoles nas casas americanas.

Enquanto isso, os gibis passavam pela Era de Bronze, marcada por temas mais adultos e menos maniqueístas. A morte de Gwen Stacy, namorada do Homem-Aranha, e o vício em drogas de Roy Harper, assistente do Arqueiro Verde, são alguns dos enredos mais icônicos do período.

A adaptação dos personagens mais famosos das revistas para os cartuchos foi natural, por mais que no início fosse necessária imaginação e boa vontade. Um pauzinho voando na tela não era um pássaro, nem um avião, era sim uma versão tosca do Super-Homem para o console Atari 2600.

A evolução dos gráficos estreitou os laços entre games e gibis, com uma linguagem influenciando a estética da outra. “Comix Zone”, um dos jogos mais marcantes do Mega Drive, mostrava um quadrinista preso na própria história, uma espécie de versão pancadaria do clipe de “Take on Me”, do A-ha.

Estados Unidos e Japão concentram parcela expressiva da produção de quadrinhos e videogames. A globalização e a disseminação da internet nos anos 1990 facilitaram o trânsito dos trabalhos entre os dois hemisférios.

Nessa mesma época, os games ganham o eixo Z, ou seja, migram do 2D para o 3D. Os objetos tridimensionais tinham poucos planos retos, cores chapadas e baixa definição. Alguns títulos driblaram a limitação, como “Star Fox”, que assumiu a abstração em sua viagem espacial.

Com o avanço da tecnologia, a textura dos objetos 3D ficou mais definida e detalhada. O realismo, associado às altas produções como “The Last of Us”, é só uma das opções que a direção de arte pode assumir.

É possível adotar textura de desenho animado. Esse é o chamado "cell shading", que reforçou a ligação do videogame com a cultura dos quadrinhos. “The Walking Dead” e “Dragon Ball Fighter Z” são exemplos dessa técnica usada em games com personagens de HQs.

Enquanto as histórias mais populares pertencem a corporações com rígidos controles, autores independentes publicam sem se preocupar com franquias, continuações, filmes e produtos. A facilidade para imprimir incentivou quadrinistas independentes. Artistas como Marcatti, Tais Koshino, Laura Athayde, Adri A. e Marcos Batista, para lembrar alguns brasileiros, atuam como editoras de uma só pessoa.

Esses autores cobram o escanteio e cabeceiam. Põem o crachá de vendedor em eventos como o FIQ, o Festival Internacional de Quadrinhos, de Belo Horizonte, a Bienal de Quadrinhos de Curitiba e a Des.gráfica, em São Paulo. Como eles bancam as publicações do próprio bolso, é comum que as novelas gráficas sejam em preto e branco. A impressão de uma cor é mais barata e possibilita composições criativas.

O movimento de independentes nas HQs encontra paralelos no videogame –a distribuição digital também deu espaço para desenvolvedores autorais.

Um jogo como “Stardew Valley”, com horas de conteúdo, foi criado por uma só pessoa. Como mostra o livro “Sangue, Suor e Pixels”, de Jason Schreier, o autor de “Stardew Valley”, Eric Barone, fez sacrifícios pessoais para concluir a obra, ficando mais de dez horas por dia programando.

Ele não é o único. Jogos como “Undertale”, “Papers, Please” e “Hyperdot” também foram feitos do começo ao fim por uma só pessoa. Sem verba para grandes campanhas de marketing, os jogos independentes apostam suas fichas na ousadia estética para se destacar.

É nesse contexto que surge “Mundaun”, com as texturas em escala de cinza desenhadas à mão por Michel Ziegler. O jogo é do estúdio Hidden Fields. Tal qual as editoras dos quadrinistas autorais, essa desenvolvedora só tem o próprio Ziegler no seu quadro de funcionários.

A Hidden Fields está sediada na pitoresca cidade de Lucerna, perto de Zurique, na Suíça. É lá onde acontece a Fumetto, importante feira de quadrinho autoral. Durante o evento, a cidade é tomada pelas narrativas gráficas, com exposições em espaços alternativos, como bares, lojas de roupa e até joalherias.

Em princípio, “Mundaun” seria uma novela gráfica. O enredo do jogo conserva o tom de quadrinho alternativo. Silencioso, compõe uma atmosfera de medo, angústia e solidão ao contar a história de um rapaz que investiga um pacto que o avô fez com o diabo para se salvar de uma emboscada na guerra. Terá de lidar com incêndios misteriosos, uma cabeça de bode tagarela e uma criança trevosa.

O jogo suíço em primeira pessoa vai na direção contrária à ação frenética típica dos jogos mais comerciais. Se na produção milionária “Horizon Zero Dawn” o jogador confecciona flechas ao mesmo tempo em que corre entre imensos robôs dinossauros, “Mundaun” pede paciência para coar um cafezinho.

Com papel, lápis e borracha, “Mundaun” mostra que todas as possibilidades expressivas estão abertas. É meio-dia na vida dos videogames.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.