Descrição de chapéu Livros

Evoluímos quando levamos nossa relação com cães a sério, diz Donna Haraway

Autora do 'Manifesto Ciborgue' defende parceria entre humanos e animais como solução para sociedades mais justas em livro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

Cecilia Cavalieri

É pesquisadora cosmotransfeminista, artista visual e mãe. Doutoranda em linguagens visuais na UFRJ, é autora de “La Femme” (Psémata, 2019)

Juliana Fausto

É filósofa, escritora, pesquisadora em pós-doutorado na UFPR e autora de “A Cosmopolítica dos Animais” (n-1 edições)

[RESUMO] Pesquisadora americana Donna Haraway lança "O Manifesto das Espécies Companheiras’", livro em que defende a parceria entre seres humanos e animais como uma solução para sociedades mais justas, e explica por que ela crê que se deve fazer parentes em vez de bebês, numa forma de feminismo coletivo e de cultivar solidariedades entre as gerações que habitam o mesmo planeta.

A americana Donna Haraway falou online, nesta entrevista, sobre “O Manifesto das Espécies Companheiras – Cachorros, Pessoas e Alteridade Significativa” (Bazar do Tempo), que trata de evolução e da relação de parentesco interespécies.

Bióloga de formação, também autora de “Manifesto Ciborgue”, Haraway, 77, é uma pensadora feminista e anticapitalista multidisciplinar —da filosofia e da tecnologia da informação à literatura—, pesquisadora na Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

O astronauta americano Alan Shepard Jr. e o chimpanzé Ham, que o precedeu no espaço, em registro de maio de 1961 
O astronauta americano Alan Shepard Jr. e o chimpanzé Ham, que o precedeu no espaço, em registro de maio de 1961  - AFP

Marilene Felinto: A morte da minha cachorra, pouco tempo atrás, é que me levou ao seu “Manifesto das Espécies Companheiras”, por indicação de um amigo. Meu contato com seu texto seria um dos “processos inconscientes de solidariedades”, como você diz?

Sim! Ambas temos a experiência de nos importarmos com um membro de outra espécie, que é nosso parente, e de passar por processos de luto, de morte, e seguir com isso... Sem nos conhecermos, temos habitado um mundo comum.

Além disso, ambas somos cidadãs de Estados-nações sob a ameaça imediata do fascismo, sob o domínio da desigualdade e do racismo, da violência contra as mulheres, da decadência da autonomia e dos direitos reprodutivos etc. E encontramos conforto na companhia uma da outra, em práticas de arte e ficção...

Em “O Manifesto das Espécies Companheiras”, os cães são os seres parceiros, mas não só. Quando levamos os cães a sério no relacionamento, eles nos conduzem a histórias evolucionárias, a mundos complexos e grandes...

A bióloga e filósofa Donna Haraway
A bióloga e filósofa Donna Haraway - Reprodução / CCCB no youtube

​​Juliana Fausto: Que concepção de verdade devemos defender diante da disseminação de fake news? 

Sobre fake news, nosso primeiro erro é achar que o mundo está dividido em falso e verdadeiro.
Não podemos impor a ontologia e a epistemologia do Ocidente modernista a todo o mundo. O outro erro é a prática de relativismo, sinônimo de desistir, de não levar nada a sério, inclusive o próprio conhecimento das verdades.

Vejamos o caso das vacinas... Quem está dizendo o quê, e com base em quê? Quais são as formas de saber que estão em jogo? Há práticas de cura que não nos interessam? Não vou descartá-las, como uma relativista [faria]. Se forem importantes, lutarei para ver se minhas verdades vão resultar em menos pessoas sofrendo e morrendo.

Neste momento, 97% das pessoas hospitalizadas por Covid-19 nos Estados Unidos não estão vacinadas. Isso importa. Os ideólogos e militantes armados da direita não querem ouvir isso. O nível de raiva deles é muito alto. Eles que fiquem com os antivacina. Parte do nosso trabalho é baixar o volume da voz deles e aumentar o da nossa.

Juliana Fausto: Você menciona formas de parentesco não convencional que cultiva em sua vida. Isso é possível em nossa sociedade hoje?

Fazer parentes em vez de bebês é cuidar de comunidades como uma prática de cuidado com gerações. É cultivar solidariedades e modos de trazer para o futuro mundos humanos e não humanos. Temos obrigação de cuidar dos jovens, de estar em um mundo pró-crianças.

Isso envolve descobrir dispositivos para fazer parentes em vez de bebês. Não se trata de não fazer bebês. Com meu slogan “façamos parentes, não bebês” quero dizer que fazer parentes é assumir uma forma de trabalhar para construir mundos multigeracionais, de modo que os Estados-nações não precisem se preocupar se a taxa de natalidade é alta para sustentar a população mais velha.

Fazer parentes requer o cuidado de redes e amigos, numa forma de feminismo coletivo, multiespécies, atento ao racismo dos programas de controle populacional.

Juliana Fausto: Você afirma que o sistema colonial da escravidão e da monocultura, a plantation, suga as potências de vitalidade e geratividade da vida. Pode falar sobre isso?

A escravidão e o sistema de plantation, que remove, que desloca forçadamente populações, quebra padrões de geratividade. É a origem do Capitaloceno. Ainda predomina no mundo da monocultura agrícola.

O mundo que a plantation construiu está em andamento. A interrupção das práticas de fazer outros seres, bebês, plantas, cidades, essa quebra de geratividade, e a implantação forçada de populações, raças, produção e reprodução... isso é o Capitaloceno. Precisamos trabalhar pelo fortalecimento da geratividade uns com os outros, e um enfraquecimento das práticas de extração enraizadas em raça, produção e reprodução de gênero.

Cecilia Cavalieri: Nos primeiros oito meses de vida de minha filha Dora, doei 30 litros de leite para o banco de leite local. Isso me permitiu fazer comunidade e gerar vida através da substância leite. Como experimentar uma abertura celular para outras espécies sem cair em uma armadilha pós-humanista? 

Você e Dora doaram leite materno a outros que não tinham acesso a ele, o que constitui um ato de solidariedade no sentido mais material da partilha dos fluidos do nosso corpo: sangue, leite, bactérias.

No seu caso, compartilhar leite com outras mulheres e seus bebês implica que você está ligada a eles, que fez parentes. Esta é uma prática forte de fazer parentes, um modo expansivo, que inclui dispositivos. Presumo que você se ordenhou com um desses aparelhos de sucção, para coletar seu próprio leite.

Decolagem da Blue Origin, que fez seu primeiro teste espacial com o empresário Jeff Bezos a bordo
Decolagem da Blue Origin, que fez seu primeiro teste espacial com o empresário Jeff Bezos a bordo - Blue Origin/Handout via Xinhua

Cecilia Cavalieri: Eu colocava minha filha em um seio e, no outro, a bomba de ordenha.

Portanto, há máquinas envolvidas, e seu leite, presumo, teve que ser refrigerado e testado quanto à presença de algum vírus, o que exige uma biologia molecular avançada.

De toda forma, o ato de compartilhar leite é cosmopolita, mundano. Você esteve no meio de um mundo biotecnológico, um mundo natural-cultural. Isso não acontece apesar da ciência, mas não se trata de glorificar o pós-humanismo. Não tem nada a ver com Jeff Bezos indo para o espaço em seu pequeno pênis, seu exopenis.

Cecilia Cavalieri: E o que dizer sobre vacas escravizadas em situações precárias?

Voltamos ao mundo da plantation, deslocamento seguido de cativeiro. Vivemos em múltiplos sistemas de cativeiros conectados, os mundos carcerários em geral, incluindo as prisões.

Não sou vegana, embora esteja próxima de sê-lo, e não sou por razões que incluem o respeito pelos trabalhadores animais que vivem com os trabalhadores de fazenda e produzem leite. Quem trabalha longas horas para a indústria de laticínios vive à margem. Mas a maioria se importa com seus animais. É importante não demonizar os pequenos produtores.

Cecilia Cavalieri: Na pandemia, artistas mulheres que cuidam de filhos, pais ou idosos ficaram mais invisibilizadas do que já eram, enquanto outras, sem filhos, conseguiram produzir. O que acha disso?

A capacidade de produtividade foi retirada das cuidadoras, principalmente mulheres não brancas, ainda obrigadas a sair e trabalhar como faxineiras, cozinheiras etc. A demanda por produzir não foi diminuída na pandemia, mas o apoio a essa produtividade, os subsídios sociais.

A interruptibilidade das mulheres é um fato. São interrompidas pelas necessidades do idoso, do filho ou de um parceiro. Como feministas, analisamos isso e fizemos barulho. Poderíamos nos recusar a voltar às aulas, por exemplo, a menos que moradia e cuidados para crianças e idosos fossem universalmente disponibilizados na pandemia. E esse pode ser um modelo de como agir após a pandemia.

Os movimentos de solidariedade são parte da resposta. Continuar a fazer arte, e valorizar o cuidado, que não é apenas um fardo. Na verdade, é um privilégio cuidarmos uns dos outros.

Marilene Felinto: Você diz que o ciborgue está incluído no “grande canil queer das espécies companheiras”. Os robôs que estão agora em Marte são espécies companheiras? 

Sim, elas são espécies companheiras, e nem todas as espécies companheiras são amigáveis. O veículo explorador de Marte e sua versão chinesa... eu gosto deles. E de que haja financiamento público para fazer essas explorações.

O que ofende é a privatização desses projetos [como fazem Elon Musk e Jeff Bezos]. Sou a favor da astronomia, da cosmologia, da exploração não militar do espaço. Mas não concordo com uma ideologia de fuga da Terra. Temos só uma Terra, e é nossa tarefa cuidar dela. E há muito dinheiro para isso, se desmilitarizarmos os exércitos globais.

O Manifesto das Espécies Companheiras

  • Preço R$ 65 (185 págs.)
  • Autoria Donna Haraway
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução Pê Moreira
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.