Descrição de chapéu Cinema

Filme mostra vida gay do interior, com golden shower, muito couro e sexo explícito

Homossexuais de 'Vento Seco', exibido em Berlim, trabalham no agronegócio e escutam Jorge e Mateus

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São Paulo

O corpo de Sandro corta o azul de uma piscina que preenche toda a tela. Ele chega à beirada, senta e analisa lentamente os outros corpos masculinos, cobertos apenas por sungas de variadas cores e tamanhos, ali presentes. O olhar furtivo se repete, pouco depois, no vestiário, onde uma lâmpada azul néon ilumina a nudez, agora total, dos banhistas.

As luzes cintilantes e excessivamente artificiais guiam toda a trajetória do personagem em “Vento Seco”, filme que Daniel Nolasco lança nesta semana nos cinemas e no streaming. Exibido no Festival de Berlim do ano passado, onde esteve no páreo do Teddy —prêmio dedicado a produções com temática LGBTQIA+—, o longa toma um caminho diferente do habitual ao retratar a homossexualidade.

Moradores de Catalão, cidadezinha de 110 mil habitantes no interior de Goiás, os gays de “Vento Seco” habitam um universo hipermasculinizado raramente visto nesse tipo de cinema, muito mais acostumado com o agito dos centros urbanos, os primeiros amores colegiais ou as baladas moderninhas embaladas por música pop.

Aqui, os personagens jogam futebol descamisados no fim do dia, trabalham no agronegócio, ouvem Jorge e Mateus e têm os corpos cobertos por pêlos. Corpos esses que, em seus vários formatos, também fogem do padrão visto nas telas quando o assunto é homoerotismo.

“Eu sempre quis muito falar sobre a vivência de pessoas LGBTQIA+ fora do centro urbano, porque eu acho que existe uma narrativa clássica de que essas pessoas precisam sair de cidades do interior para poder viver sua sexualidade. E eu sei, por experiência própria, que a coisa não é bem assim”, diz Nolasco, ele próprio cria da pequena Catalão, onde o filme foi rodado.

“Sim, são vivências diferentes, porque essas são regiões menos liberais e progressistas, mas isso não impede que sexualidades dissidentes aconteçam. Para retratar isso com credibilidade, eu criei personagens e escolhi perfis que se passam por pessoas que cresceram naquela cidade, dando um realismo para o artificialismo e as cenas mais oníricas da trama.”

Sandro é um protagonista que poderia ser chamado de terror da OMS, a Organização Mundial da Saúde. Enquanto nós, na realidade pandêmica, nem as mãos podemos apertar, o personagem de Leandro Faria Lelo sai pela cidade lambendo jaquetas de couro, bancos de moto, rostos de gente desconhecida e reguladores de temperatura de chuveiro.

Essas cenas, também por causa das luzes néon azuis, vermelhas e rosas que as acompanham, põem a trama num flerte eterno com o fantástico. Num primeiro momento, Sandro parece protagonizar uma história simples sobre um homem que, em meio à monotonia de sua rotina, encontra tempo para transar escondido em matas ou celeiros com seus colegas de trabalho.

Quando um forasteiro que parece saído de uma das ilustrações de Tom of Finland chega à cidade com sua motocicleta, o bigode grosso e as calças de couro apertadíssimas, ele desperta o interesse de Sandro —mas também o de seu amante, o que causa uma paranoia que mergulha o protagonista em ambientes escandalosamente sensuais e explícitos.

Regado a muito, muito sexo, “Vento Seco” parece querer fugir desesperadamente do caretismo de filmes sobre a descoberta da sexualidade. Sim, seu protagonista também está em conflito, mas o enfrenta tendo alucinações com golden shower —fetiche no qual se urina sobre seu parceiro— ou indo a uma orgia frequentada por fetichistas de coleira, harness de couro e, porque não, chapéus de caubói.

“As cenas de sexo estão muito presentes no cinema brasileiro há bastante tempo, é um recurso narrativo bastante utilizado. A proposta em ‘Vento Seco’ não é a de um sexo de confronto, que quer chocar. Pelo contrário, o sexo está ali para seduzir as pessoas, para que as pessoas tenham tesão”, diz Nolasco, que tomou como inspiração o pornô gay americano dos anos 1970 e 1980.

“Para mim, a pornografia é um gênero cinematográfico, um recurso narrativo, tanto quanto o melodrama, por exemplo.” Ao longo de toda a sua carreira ele vem usando esse artifício, em filmes como o documentário “Mr. Leather”, que fala da subcultura do couro em São Paulo. Seu próximo projeto vai ficcionalizar um assassinato ocorrido em sua cidade natal —também lançando mão do homoerotismo.

Ao mesmo tempo em que mostra pênis eretos e bundas sem qualquer pudor, no entanto, “Vento Seco” também flerta —ou apenas tira sarro?— com um romantismo que beira o infantojuvenil. Numa cena, o protagonista se senta, por acaso, ao lado do sujeito misterioso que desperta seu interesse, numa atração de parquinho itinerante. Sem nenhuma malícia, eles se dão as mãos enquanto um pop suave embala os movimentos de vai e vem do brinquedo.

São cenas que, curiosamente, tanto ajudam a criar o clima de tensão sexual, quanto atenuam a carga erótica da história. Até porque Nolasco não quer que “Vento Seco” fique restrito ao nicho LGBTQIA+. Esse é um filme pensado para o público gay, mas ao mesmo tempo, diz o diretor, apresenta um retrato do universo sertanejo, da agropecuária e, consequentemente, da vida nos rincões do Brasil.

Vento Seco

  • Onde Nos cinemas e na plataforma Sala Maniva
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Leandro Faria Lelo, Allan Jacinto Santana e Renata Carvalho
  • Produção Brasil, 2020
  • Direção Daniel Nolasco
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