O sentido de “Edifício Gagarine” se mostra melhor se aprendermos a história desse conjunto habitacional construído nos anos 1960 em Ivry, na periferia de Paris.
Iuri Gagárin deu nome ao conjunto e esteve presente em pessoa no lançamento do gigantesco edifício —Gagarine é a transcrição francesa do seu nome, mantida na versão brasileira do filme.
Na época, a ideia era dar aos operários das fábricas da região condições de habitação dignas —como, por exemplo, aquecimento para o inverno. Era a época também em que essa região era conhecida como cinturão vermelho, já que as prefeituras eram quase todas dominadas pelo PC, o Partido Comunista.
Em 1980, com a liquidação das indústrias locais, começa a deterioração do Gagarine. Começa também a decadência do PC francês, que se consolidaria com a crise da União Soviética, pouco tempo depois. Junto veio o neoliberalismo, o que não ajudou em nada a vida operária e aprofundou a decadência nas regiões periféricas. Em vista disso, decidiram há não muito tempo pela demolição do vasto conjunto residencial.
Chegamos, enfim, ao filme. Ninguém duvida que o lugar esteja deteriorado e muita coisa, segundo os técnicos, irrecuperável —como a parte hidráulica. Mas, para além dessa questão objetiva, deixar sua residência envolve outras questões, como as memórias, amizades, objetos, paisagens.
Pelo menos em inúmeros casos, o governo garante novos alojamentos para as famílias et cetera. Mas nem por isso a sensação de exílio é menor. Quem a sente de forma mais evidente é o jovem Iuri, que sintomaticamente herdou o nome do astronauta. Sua causa é perdida, sabemos logo de cara, e isso a torna maior. São poucos os que se dispõem a seguir o rapaz, como a jovem Diana.
Os que seguem sabemos que o amam e vice-versa. Isso é obvio. O que importa, no entanto, é o movimento que isso gera, a agitação, os sonhos, encontros. Mensagens transmitidas em código Morse, por exemplo, e compreendidas por uma só pessoa. Há algo de infantil nisso.
Podemos dizer que essa é uma visão romantizada da periferia parisiense ao contrário de, digamos, o magnífico “Os Miseráveis”, de 2019, de Ladj Ly. Mas “O Poderoso Chefão” também é uma visão romantizada do gangsterismo. E daí? Nada contra mostrar que pessoas decentes moram na periferia ou são simpáticas, como Iuri.
Digamos que a primeira hora do filme vai bem depois que começam os trabalhos de demolição. O personagem de Iuri ganha uma dimensão excessiva, o que produz altos e baixos. Mais do que isso, e como no centro existe também um eclipse, tudo acaba por deixar de lado a questão geral —o sonho de uma sociedade em que operários tenham uma vida decente— e ficar nas do herói propriamente dito.
Não anula as virtudes do filme, mas existe nele algo que se perde, que não se completa.
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