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Ícones, Martin Luther King e Malcolm X ganham nova profundidade em livros

Biografia em quadrinhos e volume de discursos destrincham mitos e verdades em torno dos líderes da luta antirracista

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martin luther king espectral discursa em púlpito

Ilustração de Ho Che Anderson para o quadrinho 'King', série biográfica em três volumes sobre Martin Luther King que sai pela Veneta Divulgação

São Paulo

“Eu digo a vocês hoje, meus amigos, que apesar das dificuldades e das frustrações do movimento, eu ainda tenho um sonho”, disse Martin Luther King num de seus discursos mais famosos. “É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.”

“Estou falando como uma vítima desse sistema americano”, disse Malcolm X num de seus discursos mais famosos. “E eu vejo a América pelos olhos da vítima. Eu não enxergo nenhum sonho americano; eu enxergo um pesadelo americano.”

As citações, que se distanciam em mensagem mas se aproximam em força retórica, deixam à mostra os traços que transformaram esses dois homens em ícones na defesa da população negra. Agora, num novo momento de auge da luta antirracista, dois lançamentos vêm aprofundar a compreensão sobre ambos, evidenciando sua humanidade e sua complexidade.

“Eu Tenho um Sonho”, discurso do pastor que se tornou sinônimo de resistência não violenta, teve influência imensa. E opera como ponto de virada na graphic novel biográfica “King” —trabalho premiado que o canadense Ho Che Anderson criou de 1992 a 2005 e só agora chega ao Brasil, em edição caprichada.

Coroando a Marcha sobre Washington em agosto de 1963, um ano antes de receber o prêmio Nobel da paz, o americano inflama a multidão com suas palavras numa cena que, no livro de Anderson, faz com que os quadrinhos se tinjam de cor pela primeira vez em quase 150 páginas.

Já no dia seguinte a esse discurso, como aponta o recente documentário “MLK/FBI”, o alto comando do FBI, a polícia federal americana, circulou um memorando interno dizendo ser preciso “mobilizar todos os recursos” do escritório para destruir o ativista. O que ajuda a desmanchar a ideia de que o pacifismo de King o tornava uma figura menos radical.

“Se você não conhece muito King, é fácil cair na armadilha de o enxergar como um santo”, diz Anderson. “King era uma pessoa que dava a outra face, mas não porque gostava de apanhar, e sim porque pensava a longo prazo.”

O pastor entendia que, se você respondesse a violência com violência, a discussão sobre o sistema racial acabaria muito mais rápido, afirma Anderson. Mas o próprio autor reconhece que era a abordagem de Malcolm X a que mais o seduzia quando jovem —em seu resumo descontraído, aquela postura “não vou aguentar suas merdas” diante dos brancos.

A fala de Malcolm que abre esta reportagem é parte de “O Voto ou a Bala”, discurso que fez em Cleveland em 1964 e está incluído no novo volume "Malcolm X Fala", que sai pela Ubu.

“É hora de você e eu amadurecermos politicamente e percebermos para que serve o voto e o que supostamente vamos conseguir se votarmos”, afirma à plateia. “E que, se não pudermos meter nosso voto na urna, isso vai acabar na seguinte situação: vamos ter que meter bala. É o voto ou a bala.”

O sociólogo Márcio Macedo, professor e coordenador de diversidade na Fundação Getúlio Vargas, aponta que a imagem de líder que defendia a violência, ainda que em contexto de autodefesa, ficou colada a Malcolm X por causa de sua relação com a criminalidade e pela maneira contundente como criticava a população branca. Mas ele era uma figura mais nuançada que isso.

Se King sempre foi considerado um prodígio em termos acadêmicos, “o letramento racial e político de Malcolm X se deu no ambiente da prisão”, afirma o sociólogo Paulo Ramos, doutor pela Universidade de São Paulo e pesquisador ligado ao Afro Cebrap. “Enquanto um frequentava a escola, o outro frequentava a rua.”

Segundo Ramos, o processo de edição biográfica por que passam as grandes figuras pós-morte fez com que, sobre King, se operasse o processo de construção do herói e, sobre Malcolm, se ressaltasse o estereótipo do negro violento.

“Os dados que se selecionam a respeito e cada um não são exatamente suas principais características. É uma oposição que se trabalha a partir dos níveis de enfrentamento tático que cada um reconhece como legítimos”, argumenta.

“O recurso das armas de fato nunca foi opção para King, mas sobre Malcolm talvez recaia o estigma do homem negro violento da rua, o criminoso, o bandido. King, por ser pastor, um cara chamado de doutor, consegue se distinguir desse estigma da violência.”

Por exemplo, no contexto de “O Voto ou a Bala”, o ativista buscava a sua própria voz como liderança negra, depois de romper com a Nação do Islã, e queria reforçar sua autonomia ao manter o tom crítico ao movimento por direitos civis liderado por King.

“O mais interessante nesse período é como ele tenta vincular o sistema de opressão a que os negros estão submetidos a uma questão de direitos humanos, o que é uma inovação ao se pensar a questão racial dentro dos Estados Unidos”, aponta Macedo.

“Quando você eleva a luta pelos direitos civis ao plano dos direitos humanos, pode levar a questão do homem negro neste país às nações que compõem a ONU”, diz Malcolm na continuação daquele mesmo discurso. “Os direitos civis mantêm você sob as restrições, sob a jurisdição do Tio Sam. Os direitos civis mantêm você sob o controle dele. Direitos civis significam que você está pedindo ao Tio Sam que trate você bem. Já os direitos humanos são algo com que você nasceu.”

Se é verdade que os dois ativistas trilharam caminhos paralelos e mutuamente críticos —só se encontraram uma vez, e foi breve—, prova de que não eram tão antagônicos assim é que quase convergiram ao final de suas curtas trajetórias.

Depois do rompimento com o líder islâmico Elijah Muhammad, Malcolm ensaiou baixar o tom em direção ao movimento liderado por King. E este adotou críticas mais contundentes à Guerra do Vietnã e em defesa de pautas redistributivas, o que o aproximava de certo ideário socialista e abalou sua relação antes estreita com a Casa Branca.

É impossível saber o que aconteceria a seguir, já que, não importa o que pregassem, ambos tiveram suas vidas encerradas violentamente. Foram assassinados a tiros aos 39 anos —Malcolm em 1965 e Luther King em 1968.

Como a estratégia de King foi de certo modo vitoriosa, segundo Macedo, da FGV, ela se tornou hegemônica na maneira como a história das relações raciais nos Estados Unidos é contada. “Isso enquanto Malcolm foi mais para as sombras até os anos 1990, quando sua imagem foi revitalizada por figuras como Spike Lee e a cultura do hip-hop e do rap.”

Agora, afirma o professor, é hora de desafiar qualquer representação maniqueísta sobre essas figuras. Quanto a isso, ele gosta de repetir sempre uma frase que atribui ao rapper Mano Brown e cabe bem aqui. “Todo homem preto é um universo em crise.”

Malcolm X Fala

  • Preço R$ 59,90 (304 págs.)
  • Autor Malcolm X
  • Editora Ubu
  • Tradução Marilene Felinto

King

  • Preço R$ 109,90 (256 págs.)
  • Autor Ho Che Anderson
  • Editora Veneta
  • Tradução Dandara Palankof
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