Descrição de chapéu The New York Times

Iraque recebe restituição de 17 mil artefatos em sua maior repatriação histórica

Evento é capítulo notável em país cuja história foi arrancada do solo por ladrões de antiguidades e vendida no exterior

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​ Jane Araff
The New York Times

Quando o avião do primeiro-ministro iraquiano aterrissou em Bagdá, na semana passada, depois de uma visita oficial aos Estados Unidos, a carga que ele transportava incluía 17 mil artefatos arqueológicos restituídos por um museu conhecido e uma universidade da Ivy League, na maior repatriação de antiguidades iraquianas roubadas que já foi realizada.

Na terça-feira, caixotes de madeira abrigando milhares de tabletes de argila e selos –peças da Mesopotâmia, a região que abrigou as primeiras civilizações do planeta– estavam empilhados ao lado de uma mesa que exibia algumas amostras dos artefatos, no momento em que o Ministério da Cultura iraquiano assumia a custódia oficial sobre eles.

A restituição de tantos objetos conclui um capítulo notável na história de um país tão devastado por décadas de conflitos e guerras que sua história mesma foi arrancada do solo por ladrões de antiguidades e vendida no exterior, terminando em exibição nos museus de outros países. E é uma vitória em um esforço mundial de diversos países para pressionar instituições ocidentais a devolver artefatos culturalmente vitais, como a campanha para restituir à Nigéria os mundialmente famosos bronzes de Benin.

“Não estamos falando apenas do retorno de milhares de tabletes ao Iraque —e sim do povo iraquiano”, disse Hassan Nadhem, ministro da Cultura, Turismo e Antiguidades do Iraque, em entrevista por telefone. “Isso restaura não só a propriedade como a confiança do povo iraquiano, ao sustentar e reforçar a identidade iraquiana neste período difícil.”

A instituição que abrigava cerca de 12 mil dos itens era o Museu da Bíblia, fundado quatro anos atrás em Washington e financiado pela família cristã evangélica que é dona da rede de lojas de artesanato Hobby Lobby. A adição de artefatos da antiga Mesopotâmia tinha por objetivo oferecer contexto sobre eventos do Velho Testamento.

Quatro anos atrás, o Departamento da Justiça dos Estados Unidos multou a Hobby Lobby em US$ 3 milhões por não verificar os antecedentes das aquisições de mais de 5.000 artefatos; alguns deles estavam entre os restituídos na semana passada ao Iraque. A Hobby Lobby aceitou, como parte de seu acordo para encerrar o processo do governo, adotar um procedimento mais rigoroso em suas aquisições, e o museu identificou milhares de outros artefatos suspeitos ao realizar uma revisão voluntária de seu acervo, posteriormente.

Mais de 5.000 das demais peças restituídas na semana passada eram detidas pela Universidade Cornell. A coleção, com artefatos de Garsana, uma cidade anteriormente desconhecida da Suméria, foi doada em 2000 à universidade por um colecionador americano. Em parte por a cidade ser desconhecida, havia forte suspeitas entre os arqueólogos de que o material viesse de um sítio arqueológico saqueado no sul do Iraque.

Essas coleções ilustram o mercado movimentado que existe para as antiguidades roubadas e destacam os problemas de países como o Iraque, sujeito a três décadas de saques de suas antiguidades. Quando as forças do governo perderam o controle de partes do território do sul do país, em 1991, depois da Guerra do Golfo Pérsico, aconteceram saques descontrolados em sítios que ainda não haviam sido escavados. E os roubos em escala industrial prosseguiram em meio ao vácuo de segurança surgido com a invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003.

Muitos dos tabletes de argila e selos restituídos são provenientes de Irisagrig, uma cidade perdida da Antiguidade. A existência da cidade só foi descoberta quando tabletes que a mencionavam foram apreendidos na fronteira da Jordânia em 2003; milhares de outros tabletes emergiram nos mercados internacionais de antiguidades.

O sul do Iraque, parte da antiga Mesopotâmia, abriga milhares de sítios arqueológicos não escavados entre os rios Tigre e Eufrates, onde surgiram as primeiras civilizações conhecidas do planeta. Babilônia e Ur, supostamente o local de nascimento do profeta Abraão, floresceram lá, e foi na região que surgiram a escrita, a astronomia e o primeiro código de leis.

O lote de objetos repatriados que estiveram em posse da Hobby Lobby não inclui o mais conhecido de seus artefatos da Mesopotâmia –um tablete de argila de cerca de 3.500 anos de idade no qual está inscrito um fragmento do épico de Gilgamesh, uma saga antiga que menciona o Grande Dilúvio e o Jardim do Éden, e precede o Velho Testamento em muitos séculos.

O Departamento da Justiça, que descreve o artefato como “propriedade iraquiana roubada”, apreendeu o tablete em 2019. É o único artefato da Hobby Lobby, entre aqueles que estão sendo restituídos ao Iraque, que esteve em exibição no Museu da Bíblia.

A Hobby Lobby, que abriu um processo contra a casa de leilões Christie’s para recuperar o US$ 1,6 milhão que pagou pelo fragmento em uma venda privada em Londres, retirou suas objeções à restituição da peça em julho. Agora depositado em um armazém federal no bairro nova-iorquino do Brooklyn, o artefato deve ser devolvido ao Iraque dentro de algumas semanas.

O tablete, que tem cerca de 16 por 13 centímetros, foi posto à venda inicialmente por um negociante jordaniano de antiguidades em Londres, em 2001. Depois mudou de mãos diversas vezes e, em 2014, a Christie’s intermediou uma venda privada baseada em documentos posteriormente identificados como falsos. O Departamento da Justiça afirmou que um comerciante havia alertado que a proveniência da peça não resistiria ao escrutínio que teria de sofrer em um leilão público. A Christie’s afirma que não sabia que os documentos eram falsos.

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Tábua de barro de 3.500 anos com trecho do épico Gilgámesh, no Museum of the Bible, em Washington - The New York Times/Museum of the Bible

O presidente da Hobby Lobby, Steve Green, disse que não sabia coisa alguma sobre coleções ao iniciar o museu e que foi enganado por comerciantes inescrupulosos.

Alguns dos artefatos foram adquiridos como parte de lotes de até 2.000 peças, com base no que o atual diretor do museu descreve como documentação vaga a ponto de a instituição não saber o que estava comprando.

Porque a maioria dos objetos adquiridos para o museu não foi estudada, eles continuam a ser um mistério. O único artefato que a instituição manteve de sua coleção, um tijolo com inscrições cuneiformes de um templo da era de Nabucodonossor, tem proveniência clara. O museu diz que os papéis de exportação da família que o doou mostram que a peça foi levada legalmente do Iraque para os Estados Unidos na década de 1920.

Mas os artefatos restituídos pela Universidade Cornell foram amplamente estudados por pesquisadores, que reportaram suas descobertas. Muitos arqueólogos criticam qualquer pesquisa realizada com objetos possivelmente saqueados, afirmando que isso não só priva os países de origem da oportunidade de estudar os objetos por conta própria como ajuda a alimentar o comércio de antiguidades saqueadas, ao elevar os preços de itens semelhantes no mercado negro.

“Perdemos essa grande oportunidade de estudar nossos tabletes, nossa herança”, disse Nadhem, o ministro da Cultura iraquiano, que afirmou que Cornell não havia consultado o Iraque sobre sua pesquisa quanto aos tabletes. “Isso deixa um sabor amargo em nossa boca.”

Cornell, que pouco revelou sobre a devolução de sua coleção, disse ter repatriado ao Iraque 5.831 tabletes de argila. Em 2013, o Departamento da Justiça dos Estados Unidos instou a universidade a devolver milhares de tabletes antigos que acreditava terem sido roubados do Iraque na década de 1990, de acordo com uma reportagem do jornal The Los Angeles Times.

Questionada sobre os artefatos devolvidos, a universidade respondeu com uma declaração na qual agradece ao governo iraquiano por sua “parceria ao continuarmos o trabalho crucial de preservar esses importantes artefatos para que as futuras gerações os estudem”. A universidade acrescentou ter publicado estudos sobre os tabletes para “o benefício cultural da República do Iraque”.

Os artefatos devolvidos pela Hobby Lobby incluem milhares de peças apreendidas pelo governo americano há dez anos, que se tornaram a base da multa do Departamento da Justiça à companhia. Eles incluem tabletes cuneiformes, selos cilíndricos antigos e impressões de selos de argila, conhecidas como “bullae”.

A maior parte dos embarques, de acordo com o Departamento da Justiça, portava rótulos que os identificavam como “lajotas turcas” e foram enviados à Hobby Lobby e duas empresas afiliadas por comerciantes dos Emirados Árabes Unidos. Outros embarques, de Israel, declaravam, falsamente que Israel era o país de origem das peças.

O Museu da Bíblia identificou mais de 8.000 peças semelhantes quando começou a revisar a proveniência de cada item em seu acervo em um esforço para escapar dos escândalos resultantes das aquisições da Hobby Lobby. As aquisições de maior destaque do museu, supostos fragmentos dos manuscritos do mar Morto, foram identificadas como falsificações.

Quando se tornou claro, pouco depois da abertura do museu, que a proveniência da maioria dos artefatos não podia ser identificada, a instituição os embalou para devolução.

“Em boa medida, o conteúdo era completamente desconhecido”, disse Jeffrey Kloha, diretor de coleções do museu, que começou a trabalhar lá depois que as peças foram adquiridas. Ele já havia declarado anteriormente que mais de 5% dos artefatos adquiridos pela Hobby Lobby como supostamente originários da Mesopotâmia eram falsos.

Agora, com a restituição das peças iraquianas e, anteriormente, de outras peças suspeitas, o museu voltou seu foco a aquisições nos Estados Unidos, e com proveniência muito mais clara, entre as quais Bíblias antigas, disse Kloha.

Patty Gerstenblith, diretora do Centro de Leis de Arte, Museologia e Herança Cultural da Universidade DePaul, em Chicago, disse que, já que a importância dos artefatos iraquianos devolvidos não é conhecida, avaliar a repatriação em termos arqueológicos era difícil.

Mas ela afirmou que a ação tinha valor simbólico. “Creio que o fato de que o museu tenha decidido agir de maneira proativa e declarar que não era possível estabelecer a origem do material foi um passo importante”, ela disse. “Outros museus deveriam fazer o mesmo.”

Tradução de Paulo Migliacci

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