Descrição de chapéu The New York Times quadrinhos

Jovens da França usam benefício cultural do governo para comprar quadrinhos

No lugar de descobrir novas obras, adolescentes preferem gastar com uma mídia de massa que já adoram

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Aurelien Breeden
Paris | The New York Times

Quando o governo francês lançou um app para smartphones que dava € 300 a cada jovem de 18 anos no país para pagar por compras culturais como livros e música ou ingressos para espetáculos e exposições, o impulso da maioria dos adolescentes não foi comprar as grandes obras de Proust ou entrar na fila para assistir a uma peça de Molière.

Em lugar disso, os adolescentes franceses preferiram comprar mangás.

“É uma iniciativa realmente muito boa”, disse Juliette Sega, que mora em uma cidadezinha do sudeste da França e gastou € 40 na compra de quadrinhos japoneses e do romance distópico “Maze Runner: Correr ou Morrer”. “Eu sou consumidora frequente de romances e mangás, e o dinheiro me ajudou a pagar por eles.”

Até este mês, os livros respondiam por mais de 75% do total de compras realizadas por intermédio do app desde que este foi lançado em todo o país, em maio –e cerca de dois terços dos livros adquiridos são mangás, de acordo com a organização que administra o app, chamado Culture Pass.

A mídia noticiosa francesa fala de uma “corrida aos mangás”, alimentada pelo “passe do mangá” – observações que surgem de uma lente ligeiramente distorcida porque o app chegou num momento no qual os teatros, cinemas e festivais de música, que estavam apenas emergindo das restrições adotadas durante a pandemia, tinham menos a oferecer. E os mangás já eram imensamente populares na França.

Mas a atenção aos quadrinhos revela uma tensão sutil no cerne da concepção do Culture Pass, entre a liberdade quase completa que ele confere aos jovens usuários –entre outras coisas, para comprar produtos de mídia de massa dos quais eles já gostam– e o objetivo dos criadores do programa, que era encaminhar os beneficiários a artes menos conhecidas e de teor intelectual mais alto.

Todos os franceses de 18 anos de idade podem ativar o passe e gastar até € 300 com o app, num prazo de até dois anos. Mais de 8.000 empresas e instituições oferecem produtos e serviços por intermédio do Culture Pass.

Os adolescentes podem comprar produtos físicos de livrarias, lojas de discos e lojas de instrumentos musicais ou de suprimentos de arte. Podem adquirir ingressos para filmes, peças, shows ou exposições. E podem pagar por aulas de dança, pintura ou desenho.

Noël Corbin, funcionário do Ministério da Cultura que comanda o projeto, disse que o passe dá aos franceses que estão chegando à idade adulta uma forma de aproveitar as ofertas culturais disponíveis nas proximidades –o app tem recursos de geolocalização– e os encoraja a curtir suas paixões culturais.

Mas também emprega incentivos para direcionar os jovens a formas de arte novas e mais desafiadoras, ele disse, uma forma de curadoria que “leva os jovens a descobrir o reino das possibilidades na vida cultural”.

Isso inclui listas de recomendações preparadas pelos membros da equipe do Culture Pass e por artistas conhecidos e celebridades, além de acesso a eventos para VIPs, como um show transmitido ao vivo em streaming do Museu Soulages, no sul da França, e uma oportunidade de acompanhar dos bastidores o festival de teatro de Avignon.

Em um discurso no lançamento do Culture Pass, em maio, o presidente francês Emmanuel Macron, que fez dessa iniciativa uma de suas promessas de campanha, declarou que a França teria conquistado “uma vitória formidável” quando os jovens deixarem de dizer que “essa obra de literatura, esse filme, não é para mim”.

Mas críticos argumentam que permitir que 825 mil adolescentes gastem dinheiro como preferirem e esperar que eles possam ser atraídos para salas de cinema de arte e não para o multiplex mais próximo é um desperdício ingênuo do dinheiro dos contribuintes.

Jean-Michel Tobelem, professor associado na Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, e especialista nos aspectos econômicos da cultura, disse que o programa era um esforço que merece elogios, mas beneficiaria principalmente as formas mais convencionais de mídia.

“Não é preciso incentivar os jovens a irem assistir ao mais recente filme da Marvel”, ele disse. Música pop ou “blockbusters” cinematográficos não têm qualquer coisa de errado, ele enfatizou, reconhecendo que “é possível ingressar no mundo da cultura coreana via k-pop, e então descobrir que existe todo um cinema, toda uma literatura, compositores e pintores que o acompanham”.

Mas Tobelem disse que não estava convencido de que uma abordagem de liberdade irrestrita quanto ao Culture Pass funcionaria nesse sentido e que o app oferecia poucos incentivos para que os beneficiários se engajassem com “obras mais exigentes em nível artístico”.

O app vem com restrições intrínsecas. Os usuários só podem gastar um máximo de € 100 em livros eletrônicos e assinaturas de mídia online, e em serviços de streaming de música e filmes, e estes também estão limitados a empresas francesas. E embora o Culture Pass possa ser usado para comprar videogames, a produtora do jogo precisa ser francesa e o game não pode oferecer conteúdo violento – uma condição tão restritiva que torna quase todos os jogos mais populares inacessíveis.

Naza Chiffert, que tem duas livrarias independentes em Paris, disse que o Culture Pass já havia exercido impacto positivo sobre o seu negócio. “Não é fácil atrair jovens que estão acostumados a ler, mas preferem usar a Amazon ou as grandes redes de varejo para suas compras, a em lugar disso virem a nós”, ela afirmou, acrescentando que depois do passe ela recebe adolescentes em suas lojas todos os dias.

Ainda assim, algumas pessoas se preocupam com a possibilidade de que o passe gere vantagens financeiras injustas para pessoas de origens privilegiadas e que não ajude muito na expansão dos horizontes culturais de outras pessoas.

“Um garoto dos conjuntos de habitação popular vai se inclinar a comprar o que já conhece”, disse Pierre Ouzoulias, senador pelo Partido Comunista francês, que batalhou pela rejeição do passe. “Não consigo imaginar nem por um momento que um desses garotos use o passe para ir assistir a uma ópera barroca.”

Ouzoulias se apaixonou pela ópera barroca quando era adolescente, a despeito de ter crescido “em um ambiente relativamente modesto e quase sem cultura musical”. Mas ele disse ser uma exceção à regra e favorece um apoio estatal mais estruturado. “Se você deixar as coisas a critério das pessoas, vai perpetuar a discriminação social”, ele afirmou.

Um grande sindicato que representa centenas de instituições culturais públicas, principalmente na área de artes cênicas, definiu o passe como “um truque presidencial” dotado de verbas “exorbitantes”. O projeto custou € 80 milhões este ano, e a verba deve dobrar no ano que vem, embora isso continue a representar apenas uma fração do orçamento anual de quase € 4 bilhões do Ministério da Cultura francês.

Oponentes acusam Macron de despejar dinheiro sobre os jovens a fim de cortejar o voto deles antes da eleição presidencial do ano que vem e de escolher uma abordagem desregulamentada em lugar de canalizar as verbas para programas culturais que enfrentam dificuldades financeiras, como os operados pelos centros culturais para a juventude, que buscam expandir o acesso à cultura de maneira mais estruturada.

O Ministério da Cultura francês rebate afirmando que planeja introduzir um passe cultural para os estudantes do ensino médio, primeiro em ambiente de sala de aula, administrado por professores, e com uma ampliação gradual da autonomia e dos valores envolvidos, até que os alunos cheguem aos 18 anos. O ministério afirma também que o passe permite que as instituições culturais cheguem aos jovens, que costumam ser difíceis de atrair, diretamente em seus smartphones.

Os adolescentes em geral ecoam as opiniões tanto dos críticos quanto dos defensores do Culture Pass –mais orientação não atrapalharia, mas a liberdade de escolha é ótima.

Gabriel Tiné, de 18 anos, estudante de osteopatia em Paris, gastou mais de € 200 de seu Culture Pass na Citeaux Sphère, uma loja de discos parisiense, na qual ele e um amigo estavam vasculhando as estantes de discos de vinil certa tarde recente.

Quase todos os seus amigos ativaram o passe, e no país cerca de 630 mil adolescentes o usam. Há pequenas queixas. O app tem problemas técnicos e funciona melhor para quem já sabe o que está procurando, e não para quem está olhando produtos sem um plano. Mas Tiné disse que gosta da ideia, especialmente da capacidade de gastar o dinheiro com instrumentos musicais ou aulas de arte.

“Eu não recusaria a ideia de ir a um show de jazz ou algo assim”, disse Tiné, ainda que tenha acrescentado que até agora o app não o estimulou a comprar ingressos. “O interessante”, ele disse, “é que cada pessoa pode fazer o que deseja com ele”.

Tradução de Paulo Migliacci

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