Legado de Burle Marx no Rio é ameaçado por falta de conservação e pilhas de lixo

Enquanto o sítio do paisagista se tornou patrimônio mundial da Unesco, seus projetos pela cidade sofrem com o abandono

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Rio de Janeiro

O lixo está em toda parte. Guimbas de cigarro, embalagens de biscoito e garrafas de cerveja invadem os jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM. O gramado bicolor, com curvas semelhantes às do calçadão de Copacabana, virou um canteiro comum.

A quatro quilômetros dali, no espelho d’água do largo do Machado, a situação não é diferente. O espaço virou um depósito de pilhas velhas, copos plásticos e panfletos descartados. Já no parque do Flamengo, falta grama em alguns canteiros e há pelo menos 16 bueiros sem tampa, 
dentro dos quais corredores desavisados podem cair.

O cenário de abandono pouco lembra que essas paisagens foram projetadas por Roberto Burle Marx, pai do jardim tropical moderno e um dos paisagistas mais importantes do século 20. Em julho, o sítio que leva seu nome, na zona oeste do Rio, foi reconhecido de forma unânime pela Unesco como patrimônio mundial. É o 23º bem brasileiro a receber esse título.

Concebido por Burle Marx como um laboratório de experimentação botânica, o espaço tem mais de 3.500 espécies de plantas, além de mais de 3.000 itens museológicos.

Para manter esse acervo de pé, a propriedade conta com mais de 20 jardineiros, dois botânicos e duas engenheiras agrônomas. Além disso, o BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, investiu na propriedade R$ 5,4 milhões, e o Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, R$ 3,3 milhões.

“Existem muitos cuidados permanentes, algo que acho muito difícil de fazer em praças públicas da cidade”, diz Claudia Storino, diretora do sítio. Ela afirma que espaços em áreas de grande circulação, como o parque do Flamengo, estão mais vulneráveis a problemas de conservação.

Além disso, o sítio está numa área mais afastada e de trânsito menos intenso. 
“Ambientes intramuros estão mais protegidos contra determinadas situações a que um jardim público está suscetível”, afirma Storino.

Enquanto o sítio floresce, as paisagens de Burle Marx espalhadas pela cidade perdem o vigor. Doutora em arquitetura pela UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, e especialista no trabalho de Burle Marx, Alda de Azevedo Ferreira considera que a má conservação dos projetos gera impactos culturais profundos.

“Quando esse desleixo acontece, as autoridades estão atacando valores que pertencem não apenas à cidade, mas também às pessoas. É um ataque ao sentimento de pertencimento delas àquele lugar”, diz.

Ferreira conta que Burle Marx foi um dos responsáveis por construir a paisagem cultural carioca, que valeu ao Rio em 2012 o título de patrimônio mundial da Unesco. A capital fluminense foi a primeira cidade do mundo a receber esse título na categoria paisagem cultural urbana.

Ela alerta que, se o cenário de degradação paisagística continuar, o status do Rio como patrimônio mundial pode ser questionado pela Unesco. Isso, inclusive, não seria algo inédito. Em julho
 deste ano, Liverpool perdeu o título de patrimônio mundial, conquistado em 2004. Na decisão, a Unesco argumentou que uma série de reformas prejudicaram a integridade da cidade britânica.

Para além de garantir títulos, a especialista diz ser importante conservar os projetos de Burle Marx para manter vivo o pensamento paisagístico do artista. “Isso é um documento histórico escrito por meio de vegetação e espelhos d’água. São documentos de um pensamento e de uma época da nossa cultura.”

Diretora do Instituto Burle Marx, Isabela Ono considera que as obras do paisagista formam um legado. “Ele teve a generosidade de plantar árvores cuja floração não veria, mas plantava porque sabia que alguém iria ver.”

Fundada em 2019, a entidade administra um acervo de mais de 120 mil itens, entre cartas, croquis, plantas, desenhos e fotografias. Além de preservar essa coleção, a entidade promove ações culturais e educacionais.

Em outubro, o instituto organizará na Casa Roberto Marinho uma mostra com obras clássicas e inéditas de Burle Marx. A exposição reunirá desenhos, fotografias e pinturas do artista. “É importante que os projetos dele sejam c
onhecidos para que possam ser valorizados”, diz Ono.

Ela afirma ainda que o paisagista preferia projetos públicos por entender que eles estavam ligados a valores democráticos. “Os projetos deles são estéticos e éticos. Há um compromisso com as pessoas e com quem vai utilizar aquele espaço. Ele tinha a preocupação de fazer um jardim para todos.”

Apesar disso, são justamente as obras públicas de Burle Marx que sofrem com problemas de conservação. Segundo Ferreira, a especialista no trabalho do paisagista, isso mostra que as autoridades não têm valorizado espaços comuns. “Áreas privadas que possuem jardins de Burle Marx 
sabem a importância desses espaços não só para a beleza do local, mas para a qualidade de vida daqueles que os frequentam”, diz ela.

Em nota, a Secretaria Municipal de Conservação afirmou que a Gerência de Monumentos e Chafarizes faz a limpeza do espelho d’água do largo do Machado duas vezes por semana. A pasta informou também que mandará uma equipe para repor as tampas de bueiro do parque do Flamengo.

Já a assessoria do MAM disse que se reporta semanalmente à Fundação Parques e Jardins sobre a conservação das obras de Burle Marx.

Filho de um alemão com uma pernambucana, Burle Marx revolucionou o paisagismo do país. Se antes os jardins brasileiros buscavam inspiração no barroco francês e no romantismo inglês, com ele o foco passou a ser a flora nacional. “Ele próprio falou em uma conferência que jardineiros no Brasil eram, em sua maioria, franceses, italianos ou portugueses. Então, eles faziam jardins aqui como estavam acostumados a fazer na Europa”, diz o arquiteto José Tabacow, que foi sócio de Burle Marx por 17 anos.

Ele conta que foi em uma viagem a Berlim, onde morou por dois anos no final dos anos 1920, que o artista percebeu o potencial paisagístico da flora brasileira. Durante a incursão, ele visitou um jardim botânico para desenhar plantas e ficou surpreso. Encontrou lá espécies brasileiras que não tinha visto aqui. “Então ele percebeu que seria bacana usar essas plantas em nossos jardins, não as espécies vindas da Europa.”

Essa ruptura com padrões fazia sentido para alguém que dizia ser avesso a fórmulas. “Se eu fosse tentar fazer uma coisa perfeita, nem tentaria começar. O importante é ter curiosidade”, afirmava Burle Marx.

A ousadia era de fato uma característica do paisagista, segundo Tabacow. “O que mais me marcou foi a coragem. Ele tinha convicção sobre as coisas que propunha. E essa coragem de propor coisas novas fez com que ele se diferenciasse.”

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