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Livros tiram a ferrugem da crítica e da história da literatura no Brasil

Luís Augusto Fischer e Luiz Maurício Azevedo recusam nacionalismo e questionam interpretações soberanas

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São Paulo

A crítica literária segue modas, sem nunca avaliar o mérito de teorias que são repetidas a torto e a direito. Essa é a avaliação de dois especialistas que acabam de lançar livros que buscam mexer nessa estrutura que vem juntando pó.

Em “Duas Formações, Uma História”, o professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luís Augusto Fischer reavalia pensadores importantes para buscar uma nova forma de fazer história da literatura.

Já o escritor, editor e pesquisador da USP Luiz Maurício Azevedo busca, em “Estética e Raça”, tornar visível o que foi invisibilizado e recuperar a historicidade da literatura negra com uma crítica à crítica literária brasileira.

A partir de uma revisita a dois pilares dos estudos de literatura no Brasil, Antonio Candido e Roberto Schwarz, objetos de escrutínio, Fischer puxa outros pensadores do campo, põe de lado o nacionalismo que formou nossa história da literatura e recorre ao historiador Jorge Caldeira e ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para propor um outro caminho.

“Continuamos pensando a história da literatura como se pensava desde que ela nasceu, entre os séculos 18 e 19”, diz Fischer, “no contexto da definição dos estados nacionais modernos, quando a literatura era uma linha auxiliar do nacionalismo”.

Para ele, é preciso antes de tudo se livrar do fantasma do nacionalismo, que, mesmo na melhor versão da história da literatura brasileira, como no caso de Candido, é o ponto a partir do qual tudo se organiza. Fischer não abre mão, porém, de um recorte nacional, que é, segundo ele, um entre outros recortes possíveis, mas que pode ajudar o encontro do leitor com nossa literatura, ao mostrar marcos de uma história nacional.

Ele chega então a uma história marcada por duas grandes forças, a que ele chama plantation e sertão. “Elas não são camisas de força, mas forças históricas que estão atuando, que dependem de ondas, de fluxos e refluxos”, diz.

A plantation tem como ponto zero a carta de Pero Vaz de Caminha e é marcadamente litorânea, escravista, latifundiária, monocultora e exportadora, já no sertão, o ponto zero é a tradição oral e é marcada pelo interior do país, pelas extensas redes de pequeno comércio, com diversos arranjos sociais e menor presença de escravos.

Ainda que nos anos 1980 e 1990 essa dualidade tenha se arrefecido, diz Fischer, as duas forças seguem em atuação. “Quem diria que ‘Torto Arado’ faria tanto sucesso hoje? E é um romance do sertão. Essa dualidade já foi mais forte, mas ainda há coisas estridentemente sertão ou plantation.”

A história proposta por Fischer não é composta de nomes e obras, ainda que ele aponte o ponto alto dessas duas matrizes históricas. Machado de Assis é o da plantation e Guimarães Rosa, o do sertão.

Ele diz se afastar da ideia de um cânone, já que sua preocupação é menos ter uma lista final de autores e mais entender o processo de constituição do cânone brasileiro. O esforço que vemos hoje para que autores que ficaram esquecidos pelo caminho sejam levados ao lugar de destaque que mereceriam é visto por Fischer, porém, como menos revolucionário do que se pensa ser.

“Muitas vezes aconteceu isso de redefinir o passado em função do presente. Na Independência foi assim, eles olharam para trás e pensaram quem eram os escritores que deviam entrar. Não era a mesma coisa, mas era parecido, o presente relendo o passado e refazendo o cânone”, diz.

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Luiz Maurício Azevedo defende que haja um cânone, ainda que diga acreditar que ele seja “só um cadáver que anda por aí”. “No Brasil as pessoas não sentem a pressão do cânone, porque elas nem sabem o que é cânone”. Para ele, a ideia é positiva na medida em que garante o mínimo que uma pessoa deva ler. “O cânone é o piso, é a coisa que todos vão ler, com a qual vamos começar os cursos, mas não é a relação máxima do brasileiro com a literatura”, diz.

Há, contudo, segundo Azevedo, um problema: “quem escolheu esses livros e se eles de fato representam um mosaico das experiências possíveis da literatura”. O olhar crítico brasileiro, que determina o que vai e o que fica, porém, é marcado por quem são os críticos.

“O pensador brasileiro é, via de regra, um homem branco, pretensamente heterossexual, que ocupa uma centralidade social na cultura brasileira, e ele arrasta para seu olhar crítico a maneira como enxerga o mundo, que contamina como enxerga a obra.” É bem verdade, diz Azevedo, que não existe esse olhar neutro, contudo, e aí mora o maior erro dos críticos, “eles colocam como neutralidade aquilo que não é neutralidade, mas compromisso com sua classe”.

Azevedo diz em seu livro que as produções literárias de autores negros “recebem um tratamento que ora é de vilipêndio ora é de adulação acrítica”. Para ele, a crítica tem por função apagar esses autores, para que o Brasil seja um país de autores homens brancos que, “acidentalmente, são parecidos com quem critica”. “É muito diferente fazer a crítica de um objeto que já é considerado, de saída, importante e fazer a crítica de um, de saída, desimportante”, diz.

Comparar o tratamento dado a dois autores pode mostrar como a diferença funciona. “Dizem que é preciso ler Carolina Maria de Jesus porque ela era uma catadora pobre, então o peso da biografia importa, mas quando falamos que Monteiro Lobato era racista aí dizem que devemos separar o autor da obra”, diz Azevedo. “Em Carolina não dissociamos a biografia da estética, mas no Lobato temos que? Por que não vale o mesmo critério para os dois autores?”

Assim, diz ele, estamos há 40 anos dizendo que Carolina precisa ser reconhecida pela crítica, discutindo sempre as mesmas questões, e não se conseguiu ainda que ela seja posta sob o escopo real da crítica, pelo valor que seu trabalho de escrita tem.

Nega-se ao autor negro a arte e, assim, recusa-se a avaliação de seu livro pelo aspecto estético, e se instrumentaliza sua obra. “O grande argumento para se ler um bestseller negro é ‘esse livro é necessario’. Mas só usamos a instrumentalidade para a literatura negra, que é incentivada inclusive por pessoas que pretensamente estão defendendo essa literatura.” Sem dimensão estética, resta ao escritor negro apenas que se fale de suas vendas.

O caminho para a mudança, segundo Azevedo, é o da crítica levada a sério, que avalie os objetos literários a fundo, sem medo de dizer o que é boa literatura ou não. “Avaliamos bem os autores que dizemos que avaliamos bem ou construímos uma imensa máquina de reprodução de interpretações de pensadores nos quais confiávamos, como Antonio Candido e Roberto Schwarz, e assim fomos só reproduzindo?”, pergunta.

Para Fischer, o cenário vem da precariedade da vida universitária no Brasil, em que a discussão não é comum, ao contrário do egocentrismo. “As posições vão mudando de acordo com a moda acadêmica sem que avaliemos o mérito delas”, diz.

O fantasma do nacionalismo é um assombro também segundo Azevedo. “E se a literatura que consideramos importante for apenas ruim, e nós, a fórceps, dissemos que era boa porque queríamos edificar um país, porque queríamos ser tão grandes quanto outros e pegamos autores meias-bocas e dissemos que eram maravilhosos?”

Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra

  • Preço R$ 34,90 (138 págs.)
  • Autoria Luiz Mauricio Azevedo
  • Editora Sulina

Duas Formações, Uma História - Das Ideias Fora do Lugar ao Perspectivismo Ameríndio

  • Quando Nas livrarias dia 16 de agosto
  • Preço R$ 79,90 (400 págs.)
  • Autoria Luís Augusto Fischer
  • Editora Arquipélago Editorial
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