Mansão prestes a ser demolida é tomada por grafites que serão NFTs

Mais de 70 artistas criaram obras, que só vão existir no ambiente virtual, em casarão próximo ao Jockey Club

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São Paulo

Parece improvável que Pablo Picasso pensasse nos anos 1960 que uma gravura sua poderia ser queimada e só existir no mundo digital, proposta que um coletivo recentemente realizou e viralizou com um vídeo da obra em chamas.

Mas em 2021 um grupo de artistas já cria seus trabalhos sabendo que eles serão totalmente destruídos em pouco tempo e que apenas a venda de suas imagens em NFT vai manter o registro da sua existência.

O projeto, batizado de Casa NFT, toma conta de todos os cômodos de um solar modernista no Jardim Guedala, próximo ao Jockey Club de São Paulo, que deve começar a ser demolido no próximo dia 23.

Enquanto um condomínio de casas não começa a ser erguido no terreno, grafites e pixos de mais de 70 artistas se espalharam pelos quartos, pela piscina já esvaziada e pelas paredes da rampa que termina num salão de festas —espaços que, mesmo com ares decadentes da destruição, dão sinais de que já foram palco de muito glamour da elite paulistana.

O empresário Alexandre Travassos, idealizador do projeto junto com Rodrigo Loli, conta que a dupla negociou a ocupação do casarão diretamente com o dono da construtora Gamboa e que as únicas imposições foram não incomodar os vizinhos e não destruir as árvores do espaço. “De resto, os artistas podem fazer o que quiserem”, diz Travassos.

Além do boom recente das obras digitais vendidas como NFTs, que já têm representantes entre as obras mais caras do mundo, ele conta que um pontapé para o trabalho foi o quadro de Banksy que se destruiu no meio da casa de leilão logo depois de ter sido vendido por US$ 1,37 milhão.

Eles reuniram, então, nomes da street art como Binho Ribeiro, EDMX, o Henrique Montanari, e Filite, que propuseram obras que conversam com as texturas e a arquitetura da casa.

“Pintar uma parede branca é possível em qualquer lugar. O interessante, aqui, é que os artistas começaram a achar os locais, nós andamos com eles e pensamos onde estariam essas obras”, diz Travassos, ao mostrar um grafite de uma flor que foi feito num buraco da parede do jardim, em meio a trepadeiras.

E essa fórmula se repete em quase todos os cômodos. No banheiro, escorre do rosto de uma mulher seu olho, que desce ralo abaixo na própria banheira. A piscina é tomada por um polvo desmembrado, cujos tentáculos se espalham até nas beiradas. Um lambe-lambe também aproveita um padrão de azulejos da parede para dar a impressão de que a janela da fotografia original é real.

A casa não é aberta para visitas, mas é possível ver algumas das obras do lado de fora, mesmo com o muro alto que cerca o terreno. É o caso da caixa d'água, que se tornou uma pessoa com uma intervenção do Original Caps.

Outros artistas também trabalharam com as inclinações mais baixas do teto, como uma das obras feitas com vela em que se aproxima a chama da parede rebaixada, e até as texturas mais ásperas dos pequenos tijolos na área externa.

Até o teto da mansão foi pintado, com uma intervenção do MIA, que também pichou o Pateo do Collegio, em São Paulo, com a frase “olhai por nóis”. Agora, ele pintou toda a área de cima de preto e escreveu “negro”.

Teto da Casa NFT com obra do artista MIA; imagem mostra teto preto e, em branco, a palavra 'Negro'
Teto da Casa NFT, projeto com grafites e pixos que devem virar NFT, com obra do artista MIA - Divulgação

A ideia é que todas as obras sejam vendidas como NFT, e mais de 80% dos trabalhos já estão documentados. Como esse certificado digital funciona como uma espécie de contrato, é possível atrelar quaisquer tipos de trabalho a ele, inclusive físicos, e os sócios ainda debatem como isso deve ser feito.

Eles consideram, por exemplo, vender as obras digitais atreladas a impressões em alta resolução das imagens, ou ainda comercializar os trabalhos exclusivamente para reprodução numa tela digital.

"Com o projeto, a gente entra no cerne da discussão sobre como o NFT pode ajudar a arte, que é organizar a relação do direito autoral", afirma Travassos. "Eu posso registrar que essa obra foi feita, como e por quem."

Apesar da construtora já planejar a demolição do casarão, os sócios pretendem fazer com que o começo da destruição das obras seja feito pelos próprios artistas —e também querem que pedaços das paredes sejam guardados como um registro físico tanto dos trabalhos quanto da memória do casarão.

Esse processo, assim como a feitura dos grafites e pixos, estão registrados em vídeo, que deve formar um documentário mais adiante. Travassos ainda afirma que já há planos para outra Casa NFT, em parceria com construtoras.

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