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O Brasil é capaz de criar um game arrasa-quarteirões como 'GTA' ou 'Dark Souls'?

O jogo nacional 'Dolmen' tem chamado atenção pelos gráficos, mas peitar um 'The Witcher' ainda é sonho distante

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Arte do game brasileiro 'Dolmen'

Arte do game brasileiro 'Dolmen' Divulgação

Belo Horizonte

Quando se trata de videogame, três letras separam quem é Golias e quem é Davi. Os AAA —ou “triple A”— são aqueles games com orçamentos milionários e equipes numerosas.

É algo bem próximo daquilo que se chama de blockbuster no mundo do cinema. Títulos como “Grand Theft Auto”, “Fifa” e “Resident Evil”, que são nomes conhecidos até por quem não joga videogame, são alguns exemplos de AAA, que é uma classificação informal.

Esse tipo de jogo costuma ser associado a uma estética hollywoodiana, com poderosos gráficos em três dimensões. Há ainda os AA, menos grandiosos e de orçamentos mais enxutos. O hit “Fall Guys” e o clássico “Demon Souls”, por exemplo, costumam ser chamados de “double A”.

E volta e meia um Davi calça um salto alto para tentar ficar mais próximo do Golias. O Brasil não viu nascer em suas terras nenhum game blockbuster até hoje, mas empreitadas mais ambiciosas começam a surgir nesse ecossistema bem mais árido do que os de Hollywood ou Tóquio.

À primeira vista, o game brasileiro “Dolmen”, do estúdio potiguar Massive Work, pode até parecer um AAA. O jogo ainda inédito tem chamado a atenção pelo visual futurista e pela complexidade gráfica. “Dolmen” é um indie, um jogo independente, mas um indie turbinado. Os seus desenvolvedores o encaixam numa nova categoria, a dos “triple I” —"I" de independente.

“Desde 2018 esse termo vem crescendo. Normalmente a gente tinha as categorias mais comuns, de triple A, double A, mas o aumento de estúdios indies com uma qualidade gráfica melhor trouxe essa nova classificação informal”, diz Gabriel Neves Ferreira, programador chefe de “Dolmen”.

Um Davi peitar um Golias não é algo exatamente raro. O singelo “Among Us” desbancou “Call of Duty: Warzone” e “Valorant” no último Game Awards, o Oscar dos joguinhos. O afrofuturista “Dandara”, desenvolvido em Minas Gerais, com sua cara pixel art em 2D, foi eleito pela revista Time um dos melhores jogos de 2018, ao lado de "God of War" e "Red Dead Redemption 2".

Para nadar entre os tubarões, o indie não precisa ter gráficos ultra-avançados. Ainda assim, esta é uma escolha de alguns pequenos.

“Dolmen” não chega nem perto do orçamento gigantesco de um AAA, mas é ambicioso o suficiente para se propor a alcançar um grau de complexidade gráfica elevado, próxima de um blockbuster —aposta esta que não é tão comum entre produções brasileiras de games.

Por exemplo, “GTA 5”, lançado em 2013 pelo braço escocês da Rockstar Games, custou £170 milhões, segundo o jornal The Scotsman, o que na época equivalia a R$ 611 milhões —é tido como um dos jogos mais caros da história até hoje. Para além do território do mainstream, há um oceano de jogos independentes, das mais diferentes origens e formatos —a única coisa que os une é o fato de não terem custado o PIB de um país pequeno.

Segundo Rodrigo Terra, presidente da Abragames, a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais, um game com um orçamento de R$ 7 milhões, por exemplo, “é uma realidade distante para muitos estúdios brasileiros, muitos jogos de extrema qualidade por aqui são feitos por entre R$ 50 mil e R$ 500 mil". “Super indies não formalizados e de coletivos muitas vezes trabalham com valores bem menores, em torno de R$50 mil."

Alguns games escolhem ter uma cara bem brasileira, como é o caso de “Árida”, produção baiana que gira em torno da Guerra de Canudos. Hoje em dia, porém, é comum que jogos brasileiros optem por uma cara mais internacional, sem grande ênfase em elementos só compreensíveis ao público nascido na terra de Fausto Silva, na expectativa de atingir um público global.

Por isso, não espere de “Dolmen”, essa produção vinda do Rio Grande do Norte, elementos regionalistas ou uma cara “brasileira”. É uma ficção científica espacial, que se passa numa época em que a humanidade já colonizou outros sistemas solares, com inspiração em “Dead Space” e “Dark Souls”. Suas referências estão mais para H. P. Lovecraft e Ridley Scott do que para potiguares ilustres como Câmara Cascudo ou Xand Avião.

Talvez esse perfil globalizado seja uma das principais diferenças da atual geração de games brasileiros em relação aos pioneiros da cena de desenvolvimento de jogos no país. Brasileiros criam obras de videogame desde os anos 1980, pelo menos, como é o caso de “Avenida Paulista”, de 1986. Era um jogo de aventura em texto, em que o jogador tenta resgatar o diretor do Museu de Arte de São Paulo, o Masp , enfeitiçado por uma bruxa.

Mas é depois do Plano Real que mais gente se aventura em empreitadas um pouco mais ambiciosas na produção de games. Nos anos 1990 e início dos 2000, muitos os jogos feitos por aqui optavam justamente por ter uma cara mais brasileira, usando isso como um diferencial. E já nessa época existia o desejo tupiniquim de criar um jogo com cara de blockbuster internacional.

Só que, enquanto os japoneses já produziam gigantes como “Final Fantasy 7”, o Brasil via surgir em suas terras jogos como “Incidente em Varginha”, de 1998, sobre o folclórico extraterrestre do sul de Minas Gerais.

“‘Incidente em Varginha’ vinha de uma vontade de dois desenvolvedores daqui de São Paulo de se aproximarem de jogos AAA. Só que eles sabiam que eles não tinham a melhor tecnologia nem o melhor investimento”, conta o jornalista Rique Sampaio, que investigou a chegada dos primeiros computadores aos lares brasileiros para o podcast documental “Primeiro Contato”. “‘Incidente em Varginha’ era um jogo de tiro em primeira pessoa, com controles comuns de jogos AAA da época, mas ao mesmo tempo vinha com uma tecnologia já defasada”, diz Sampaio.

O game brasileiro 'Incidente em Varginha', pérola dos anos 1990 - Divulgação

“Principalmente naquele momento da década de 1990, o Brasil era um país muito atrasado tecnologicamente. Eles sabiam das limitações e tentavam compensar com algo muito único, que você só conseguiria produzir aqui. E eles encontraram isso no E. T. de Varginha e nas ambientações —Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro. Você não vai encontrar isso em outros jogos."

Essa época também pariu clássicos brasileiros, alguns amados, outros malditos. Alguns pequenos notáveis são "Big Brother Brasil 3D On-Line", “No Limite”, “Sandy & Júnior: Aventura Digital”, “Sandy & Júnior: Acquaria”, além de “Vampiromania”, que flertava com o enredo da novela “O Beijo do Vampiro”—no folhetim, o game era um grande sucesso entre os jovens. Na vida real, nem tanto.

Não foi só a Globo que se lançou no mundo dos games. "Show do Milhão" e "Casa dos Artistas" também viraram jogos para PC.

A empresa que publicou muitos desses jogos é a defunta Brasoft, que tinha foco em licenciamento, dublagem e legendagem de games estrangeiros. Mas volta e meia surgia um aventureiro, e a empresa acabava apoiando o gamer conterrâneo.

“Aparecia gente querendo desenvolver aqui no Brasil. Como nós tínhamos toda a cadeia de distribuição, eu queria incentivar que acontecesse aqui”, diz Paulo Milliet Roque, o fundador da Brasoft, um dos precursores da indústria de jogos no país e um aficionado gamer pioneiro —hoje, aos 70 anos, ele prefere jogar “Flight Simulator”, mas só uma vez por semana.

“A decisão de fazer os jogos foi emocional, não foi baseada em planos de negócios. Sempre foi um desejo meu de desenvolver títulos brasileiro, mas nós nunca conseguimos fazer um jogo de sucesso nacional", diz Roque. “Eu não tinha condição de fazer isso [AAA] aqui. Vontade eu tinha, mas o nosso mercado nunca comportou.”

Uma coisa que o mercado da Brasoft de fato não comportou foi a maciça cultura de pirataria que surgiu no Brasil nos anos 2000 e que é apontada por Roque como o principal motivo para o fim da empresa. “Desenvolver um jogo é um risco muito grande, porque pode não dar certo. Por isso que nunca houve uma empresa que fez um desses grandes hits [no Brasil] até hoje”, lembra Roque.

Só que a internet mudou muito o cenário brasileiro. Hoje em dia é possível ter acesso, gratuitamente, a bons softwares de desenvolvimento de jogos, as chamadas engines. Além disso, há um maior compartilhamento de informações, que vão desde tutoriais de programação no YouTube a modelos 3D prontos, a partir dos quais os desenvolvedores podem trabalhar, sem ter de começar do zero.

“As engines diminuíram muito esse gap. Quebraram essa regra que existia no passado, de que só as grandes empresas tinham acesso às melhores tecnologias. Hoje um desenvolvedor independente consegue na Unreal Engine obter o mesmo grau de sofisticação gráfica que um jogo AAA. Obviamente se ele está desenvolvendo um jogo sozinho ele vai ter menos recursos, menor capacidade de criar coisas grandiosas. Mas de qualquer forma você tem alguns atalhos que permitem que você alcance pelo menos algo similar”, diz Rique Sampaio.

Nos últimos anos, os games passaram aos poucos a serem reconhecidos como produtos culturais, ou até arte. Com isso, surgiram as primeiras iniciativas de política pública cultural para jogos eletrônicos, como as da Agência Nacional do Cinema, do governo de São Paulo e da Spcine.

É nesse contexto que nasce “Dolmen”, combinando o acesso às ferramentas ao desejo de fazer jogo filé mignon 100% brasileiro. O jogo até tentou um edital da Ancine, mas não foi aprovado. Os cabeças por trás da Massive Work dizem que, hoje, comemoram não terem sido aprovados, já que poderiam esbarrar em entraves burocráticos. É um problema, aliás, que poderia minguar negócios vindouros com grandes distribuidoras —hoje eles têm contrato com a Koch Media.

Já "Araní", outro game nacional inédito que busca uma cara de AAA, conseguiu ser aprovado pela Ancine. Esse título pernambucano, porém, busca uma cara bem brasileira. Protagonizado por uma guerreira indígena, traz uma narrativa inspirada em culturas de índios da América do Sul, mas as referências ainda estão em blockbusters do Japão e dos Estados Unidos, como as franquias “Devil May Cry” e “God of War”.

“No caso de ‘Dolmen’, eu sinto que ele está tentando replicar essa estética sci-fi, muito dos jogos que seguem a linha ‘Dark Souls’", diz Rique Sampaio.

Não é uma surpresa o fato de que a maior parte dos jogos AAA vêm de países como Estados Unidos, Japão e Reino Unido, economias dinâmicas com desenvolvimento tecnológico e de propriedade intelectual avançados.

O que há por aqui são empresas que prestam seviços para grandes títulos, como "Horizon Zero Dawn", que tem um pouco de programação pernambucana em seu DNA. Nesse sentido, é de se perguntar se o Brasil tem condições reais de criar um AAA —ou ainda, se o Brasil precisa criar um AAA para se tornar relevante no universo de jogos eletrônicos.

Antes de responder, vale lembrar uma exceção à regra. A Polônia, apesar de não ser uma das economias mais poderosas do mundo, é berço de uma importante indústria de jogos. De lá, saíram jogos AAA como “The Witcher 3”, além de “Cyberpunk 2077”, que gerou tanto hype quanto decepção após ter sido lançado repleto de bugs. Ambos são frutos da CD Projekt Red, maior estúdio de games do país.

“A CD Projekt é a nossa principal inspiração”, diz Henrique Heltai, diretor da Massive Work. “Mas é muito difícil você se comparar a um ‘The Witcher’, porque eles têm uma qualidade absurda. Eu não posso me comparar a eles, porque eles são muito fortes, a realidade seja dita. Mas quero um dia, sim, conseguir desenvolver jogos capazes de ganhar prêmio de melhor jogo do ano, com fez ‘The Witcher’.”

"A indústria de games do Brasil não tem estrutura e nem precisa ter essa estrutura de atrair capitais para fazer um jogo de US$ 300 milhões ou de ter um estúdio com 400 pessoas trabalhando num mesmo produto. O que a gente precisa é de um jogo bom, ou jogos bons sequencialmente sendo lançados, que façam com que a percepção da indústria sobre aquilo que a gente faz aqui no Brasil seja boa”, diz o pesquisador Pedro Zambon, diretor de estratégia da Game Jam Plus, uma competição de desenvolvimento de jogos.

“A Polônia tem AAA, mas ela não começou assim, do nada. Se você pega o orçamento do ‘Witcher 1’ da CD Projekt, você vai ver que não é um jogo com lançamento de estrutura AAA”, conta Zambon. “O estágio de maturidade e de complexidade de uma indústria para ter um AAA é algo que, em economias emergentes, é muito difícil de existir.”

É comum ouvir de desenvolvedores brasileiro a máxima que o gamer brasileiro médio não gosta de jogar jogo brasileiro —ele só vai prestar atenção em títulos feitos por aqui quando estes fazem barulho lá fora, como foi o caso de "Dandara", por exemplo. E não há como negar que o que faz brilhar os olhos desses gamers mais mainstream são os blockbuster. Por isso, é compreensível uma constante pulsão da comunidade nacional de tentar chegar perto dos AAA. "O publico mainstream vai desdenhar dos jogos brasileiros até que os jogos brasileiros pareçam com aqueles jogos blockbuster", diz Zambon.

“Hoje, talvez, esteja nascendo no Brasil uma empresa que daqui a dez anos fará um AAA”, acrescenta o pesquisador. “Jogos não necessariamente precisam ter essas grandes produções. Um bom jogo de escopo razoável independente com orçamento bom —porém não dezenas de milhões de dólares— é o suficiente para fazer com que a nossa indústria seja percebida com uma indústria boa.”

“Dolmen” foi um dos poucos jogos brasileiros a dar as caras na última E3, a maior feira de games do mundo. Mas não foi o único. Um outro conterrâneo foi “Dodgeball Academia”, um game de queimada, aquela brincadeira de tacar uma bola nos seus amigos. Este jogo possui gráficos bem menos grandiosos —o que não significa que são “piores”, vale lembrar. E assim como “Dolmen”, “Dodgeball” conseguiu fechar contrato com uma grande publicadora estrangeira.

Mas não dá para dizer que o Brasil não tem pesos pesados relevantes no mercado global de jogos. Num país em que a maioria dos gamers joga pelo celular, a Wildlife Studios, de São Paulo, que foi avaliada em US$ 3 bilhões no ano passado, não faz games AAA, só jogos mobile.

A própria Massive Work, que faz “Dolmen”, não é boba nem nada e também se aventura no mundo mobile. O outro jogo que integra o portfólio do estúdio é “Tap Hitz”, para celular --um irmão mais novo e menos luxuoso do sci-fi de ação e aventura.

Em vez de atirar em criaturas alienígenas em alta definição, o objetivo é acertar notas de músicas como as dos sertanejos Fernando e Sorocaba, numa espécie de “Guitar Hero” em duas dimensões, para celular.

Costumam dizer por aí que, para uma mãe, todo filho é bonito e que não existe essa de preferido. Mas por enquanto "Tap Hitz" está na gaveta, e "Dolmen" deve ser lançado no inicio do ano que vem para PlayStation 4 e 5, Xbox One e Series e Steam.

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