Descrição de chapéu Televisão

De Faustão a Huck e Mion, entenda como será o futuro dos programas de auditório

Formato passou por dança das cadeiras na Globo, mas seu apelo popular ainda parece resistir na era do streaming

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Ilustração feita a partir de imagens dos apresentadores Tiago Leifert, Fausto Silva e Silvio Santos Zé Vicente

Thiago Stivaletti
São Paulo

Os últimos meses estão sendo turbulentos para uma instituição nacional que não é muito afeita a mudanças —os programas de auditório. Na Globo, Fausto Silva encerrou seu contrato antes do final do ano e segue rumo à Band. Luciano Huck, que até outro dia ainda considerava sua candidatura ao Alvorada em 2022, desistiu do projeto para assumir o novo “Domingão” na Globo.

No próximo sábado, quem assume o seu “Caldeirão” é Marcos Mion, figura de carisma testado em auditórios na MTV e na Record. No SBT, depois de quase dois anos sem gravar, Silvio Santos tentou voltar a interagir com plateias em julho, com testagens e protocolos, mas um diagnóstico de Covid o tirou de circulação.

Essas mudanças de rota vêm acontecendo num mundo cuja marca costuma ser a estabilidade de um mesmo apresentador por décadas, fonte de carisma para o público e de segurança para anunciantes. Desde a estreia na TV Paulista, o “Programa Silvio Santos” está há 58 anos no ar; Raul Gil comanda sua atração há 48; Hebe Camargo recebeu convidados por 46, e Gugu Liberato encantou plateias por 35. Faustão ficou 32 anos no “Domingão”.

Cabe a questão —com o fim da era dos grandes ícones se aproximando, os programas de auditório vão saber se renovar? Ou nomes mais jovens, como Mion e Rodrigo Faro, hoje ocupando os domingos da Record, jamais terão o potencial de atração de um Silvio Santos ou um Raul Gil para um público essencialmente conservador em seus gostos?

“Existe um declínio consistente desse formato e de toda a programação da TV aberta. A TV ainda é mais resistente no Brasil do que em outros lugares do mundo, mas é inevitável que as novas possibilidades, como o YouTube e as redes sociais, desgastem os velhos modelos”, diz Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo e autor de “Brasil em Tempos de TV”.

Mas existe outra corrente que considera que as mudanças promovidas pela Globo indicam apenas uma vontade de manutenção. Mauricio Stycer, colunista deste jornal, vê uma intenção clara da emissora em renovar e rejuvenescer suas atrações. “Mas tudo segue uma certa lógica de mudar para ficar igual”, aponta.

“Nunca houve tanto espaço para os grandes comunicadores, e as redes sociais criaram ainda mais aproximação com eles. O diálogo é cada vez mais intenso, e hoje o público quer saber também o que eles pensam sobre os assuntos do momento”, diz Amauri Soares, diretor da TV Globo.

“Não vai acabar, vai apenas se transformar”, afirma Homero Salles, que dirigiu por 32 anos os programas de Gugu no SBT e na Record. Salles foi um dos primeiros a usar a medição de audiência minuto a minuto, para saber quais quadros e atrações musicais emplacavam.

Ele se recorda, por exemplo, do dia em que uma banda desconhecida, os Mamonas Assassinas, foi tocar no programa do Gugu, e a audiência disparou — o diretor então fez com que cantassem seu hit “Pelados em Santos” quatro vezes.

Esse episódio dos anos 1990 “raiz” mostra o quanto não foram só os apresentadores que envelheceram; seus programas também foram ficando cada vez mais “Nutella”. Muitos diretores têm saudade da época em que havia uma maior espontaneidade na condução dos programas —ninguém nunca sabia onde um “Cassino do Chacrinha” ia terminar, nem se naquele dia ele lançaria uma peça de bacalhau ou um abacaxi na plateia.

Mesmo Huck e Mion começaram suas carreiras nos anos 1990 em programas que não passariam por filtros feministas, com mulheres-objeto como a Tiazinha e a Feiticeira. Hoje, os apresentadores têm seus raios de ação limitados pelo politicamente correto.

Se falta espontaneidade, sobram os formatos comprados. Silvio carrega o “Topa Tudo por Dinheiro” há décadas, as “Videocassetadas” só vão parar de ser exibidas por causa da saída de Faustão, e Huck já prometeu levar “Quem Quer Ser um Milionário?” para o domingo.

Ainda é um enigma saber como os espectadores vão reagir a antigos apresentadores ocupando dias diferentes do que o habitual. O público de Fausto Silva vai gostar de o ver cinco vezes por semana à noite,
como a Band já confirmou que será seu programa? Huck terá apelo aos domingos?

“Aos sábados, o espectador para menos na frente da TV; ele tem que lavar o carro, fazer compras, ir ao shopping. Já aos domingos a família inteira disputa a TV, é preciso agradar várias idades e classes sociais”, diz um executivo. Esses programas têm a atenção flutuante do espectador.

Se há dúvidas no ar quanto ao futuro do formato, também há muitas certezas. Num momento de crescimento do streaming, plataformas como Netflix e HBO Max anunciaram reality shows de relacionamento ou de sobrevivência, no que parece ser a concorrência mais próxima com formatos consagrados da TV.

Mas o programa de auditório é do tipo “quente”, que passa ao espectador a sensação de um show ao vivo que ele só pode ver na TV aberta —mesmo que a maioria deles hoje seja gravada. Essa “temperatura”, como dizem os produtores, segue sendo o diferencial das emissoras tradicionais.

Essa figura do apresentador “solar”, centro absoluto do seu programa, tem um caráter brasileiro. Nos Estados Unidos, figuras como Johnny Carson, Dick Cavett, Oprah Winfrey, David Letterman e Jimmy Fallon têm programas no formato talk show, não numa série de gincanas e atrações. Curiosamente, o grande equivalente a um Silvio Santos na TV americana é latino. Mario Kreutzberger, conhecido como Don Francisco, apresentou seu “Sábado Gigante” por 53 anos na TV chilena e no canal americano Univision.

O DNA do programa de auditório à brasileira começa ainda no rádio. Homero Silva —que comandou o show inaugural da TV Tupi em 1950—, Silvio, Raul Gil, Faustão, Hebe Camargo, Flávio Cavalcanti, J. Silvestre, Bolinha e outros se iniciaram em programas de rádio que contavam com auditórios de fãs fervorosos.

Entre as muitas atrações, uma cravou seu lugar no imaginário nacional —o show de calouros, formato que se transplantou naturalmente do rádio para a televisão e persiste com sucesso até hoje, com Raul Gil ou no “The Voice”.

Mas por que esses programas fincaram tantas raízes no Brasil? Eugênio Bucci considera que eles cumprem uma função central no imaginário brasileiro. “São o lugar onde o espectador comum pode frequentar a intimidade das estrelas, sentir que tem acesso a elas. O bom apresentador tem uma dupla face —ele parece pertencer igualmente ao mundo dos famosos e ao das pessoas comuns”, ele afirma.

Segundo Bucci, os princípios que regem a interação entre apresentador e plateia podem ser vistos na postura histriônica dos pastores nos programas religiosos, na falsa intimidade de uma revista Caras e até no cercadinho de Bolsonaro em Brasília, momento em que o presidente ensaia piadas, interage com anônimos, tira selfies e colhe aplausos.

Algumas vezes, contudo, o fervor das plateias se deparou com um circo de horrores. A disputa pela audiência já fez programas de auditório buscarem conteúdos polêmicos que ultrapassaram limites éticos —logo em seguida, num contrapeso, há uma retração para conteúdos conservadores, até a próxima “ousadia”.

Um dos episódios mais célebres ocorreu em 1971, quando a guerra aos domingos acontecia entre o “Programa Flávio Cavalcanti”, na TV Tupi, e o “Buzina do Chacrinha”, na Globo. Em 29 de agosto daquele ano, Cavalcanti levou ao seu programa Dona Cacilda de Assis, mãe de santo que dizia receber Seu Sete, uma entidade da umbanda. Ela fez entrar no palco “ex-cegos, aleijados e cancerosos que havia curado” e jogou cachaça no auditório.

Mais de 5.000 pessoas ficaram do lado de fora do teatro onde o programa era transmitido, e houve um grande tumulto que deixou feridos. Para não ficar atrás, a produção do Chacrinha buscou Seu Sete na saída da Tupi e o levou à Globo para um show ao vivo no mesmo dia. O apresentador chegou a fazer um “dueto” com a entidade, fumando charuto e tomando passes. Ao final da apresentação, a Polícia Federal apreendeu os videoteipes. A repercussão negativa na imprensa levou as emissoras a assinarem um acordo para evitar atrações “sensacionalistas e de mau gosto”.

Nos anos 1990, quando a guerra era entre Faustão na Globo e Gugu no SBT, houve movimento semelhante. Na disputa feroz, Faustão apresentou o garoto Rafael Pereira dos Santos, o Latininho, com 15 anos e apenas 87 centímetros de altura. Meses depois, o sushi erótico, com uma modelo nua coberta por comida japonesa consumida por atores que faziam comentários machistas, foi a gota d’água e fez o apresentador dizer que havia sido contra o quadro.

Seis anos depois, em 2003, foi a vez de Gugu se queimar com a falsa entrevista com supostos integrantes do PCC, que minou sua credibilidade.

A troca de apresentadores na Globo ocorre num momento em que a pandemia alijou esses programas de seu componente mais vital, o auditório. Desde março de 2020, atrações de todas as emissoras passaram a ser gravadas sem espectadores, ou fazendo uso de uma plateia virtual —um recurso usado em programas tão díspares quanto o “Altas Horas” e o “Que História É Essa, Porchat?”. O resultado pífio mostrou quanto as plateias são importantes.

Nos últimos tempos, as emissoras têm tentado retomar o presencial dos auditórios, fazendo testes em toda a plateia e equipe. Mas o número de pessoas envolvidas é tamanho que fica difícil afastar o risco de contágio, como mostrou o diagnóstico positivo de Silvio Santos para a Covid-19. Já a Globo voltou a testar as plateias presenciais em seu novo reality musical, “The Masked Singer”, do qual participam grupos de pessoas vacinadas e da mesma família.

Todos são testados no dia, usam máscara e ficam separados por uma divisória de acrílico. O novo “Caldeirão”, o novo “Domingão” e a nova temporada do “The Voice Brasil” terão esse esquema. A TV segue amando e precisando das suas plateias; resta saber por quanto tempo outra plateia, a de casa, seguirá correspondendo a esse amor.

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