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Cinema

'Um Animal Amarelo' confronta os fantasmas da herança colonial

Longa de Felipe Bragança é um corpo estranho no cinema brasileiro, mais alinhado à cena portuguesa contemporânea

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Um Animal Amarelo

  • Quando Estreia nesta quinta (26)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Higor Campagnaro, Isabél Zuaa, Tainá Medina
  • Direção Felipe Bragança

Entramos em “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança, pelas beiradas de Moçambique. Na praia, sob um céu azul desbotado, vemos navios encalhados e homens e mulheres negros em trânsito. Essa paisagem sugere origem e destino.

No Brasil, o cineasta Fernando, papel de Higor Campagnaro, tenta emplacar o roteiro de um filme radicalmente autoral, que bebe da história de seu avô Sebastião, vivido por Herson Capri, desgarrado da família em busca de riqueza no garimpo. O ancestral amarrava à cintura um fêmur, símbolo das memórias tenebrosas da escravidão e de sua história familiar.

A pretensão de filmar a dor do passado responde ao horror da vida brasileira. Em colapso financeiro, o cineasta decide sair de um Brasil caído no fascismo e entrar na fábula de seu próprio filme, partindo para a extração de pedras preciosas numa aldeia na fronteira de Moçambique com o Zimbábue.

"O país ficou muito mais escroto depois que você partiu", ele saberá em seu regresso à tristeza tropical. “Um Animal Amarelo” reflete, sem dúvida, uma crise de utopia.

"Quero ser rico e boçal", repete o cineasta na África. Há uma incongruência em seu caráter. O artista sonhador adere à ganância de um grupo de traficantes de gemas valiosas, vira um escravo de sua líder e embarca para Portugal atrás de compradores ricaços.

Na abertura do filme, uma citação de Darcy Ribeiro nos previne sobre a coexistência de ternura e crueldade na formação do povo brasileiro. O filme se situa, de algum modo, entre esses dois polos.

Passamos então a ser guiados por uma narração de antropologia fácil e poesia torrencial, criadora de uma atmosfera de inteligência embriagada de si mesma. Assim, antes de estabelecermos nossa liberdade diante do filme, devemos ouvir “logo tu, branco brasileiro, sem origem e sem identidade". "Nem europeu, nem africano, nem indígena. Neto e bisneto de estupros e sequestros escondidos."

Uma personagem moçambicana assume essa voz. O que poderia ser um deslocamento promissor, por atribuir centralidade a uma consciência traumatizada pelo colonialismo, se transforma numa interpretação opressiva contra a inteligência das imagens. A perspectiva anticolonial precisa sempre ser explicitada por palavras, e palavras implacáveis. Esse recurso sabota a excelência de cenas de voo imaginativo.

Dito isso, “Um Animal Amarelo” tem méritos evidentes. Bragança não é de facilidades. Seu filme revela domínio do ritmo, referências cinéfilas, engenho fabulativo e plástico, reflexão sobre a linguagem do cinema. No olhar crítico, relê certo encanto modernista pela ideia de identidade.

Filmado entre Portugal, Brasil e Moçambique, traz ainda uma ambição tricontinental em sua leitura da história, um salto que faz lembrar o projeto internacionalista de Glauber Rocha na Europa, África e América do Sul.

Em grande medida, a tensa confluência de culturas se adensa nas sequências de Lisboa, o palco de colonizadores e colonizados, em que a fragrância de depravação impregna a decadência europeia.

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O cineasta Felipe Bragança - Mastrângelo Reino/Folhapress

Bragança apresenta uma direção firme de atores e extrai um desempenho notável de Herson Capri. Com precisão, Higor Campagnaro soube definir os contornos oníricos e picarescos de seu personagem.

No elenco sem desníveis, temos atuações talentosas de Isabél Zuaa, Matamba Joaquim, Catarina Wallenstein e Tainá Medina. No filme, e no filme dentro do filme, igualmente eficientes, Sophie Charlotte e Thiago Lacerda.

O pendor alegórico se define por um espírito amarelo, peludo e devorador, de face mascarada, onipresente em sua evocação do horror colonial. Suas aparições acompanham o cineasta da infância à maturidade. Nem sempre sua presença cênica oferece ganhos à narrativa, mas o risco é bem-vindo.

Se dialoga com Joaquim Pedro de Andrade na representação da nacionalidade —e suas mazelas—, a visão pós-colonial de Bragança desenvolve uma conversa mais estreita com o imaginário do cinema português contemporâneo, de Pedro Costa a Miguel Gomes, apesar das diferenças estilísticas.

Nessa investida, “Um Animal Amarelo” parece um corpo estranho no cinema brasileiro, pois confere abrangência geopolítica à sua abordagem do legado colonial, absorvendo o aspecto fantasmagórico indissociável da memória das violências. O passado nos decifra e devora.

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