Descrição de chapéu Cinema festival de veneza

Adaptação de Elena Ferrante em Veneza empobrece 'A Filha Perdida' original

Filme que marca estreia de Maggie Gylenhaal na direção não consegue tornar literatura abstrata em algo palpável

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Veneza

Quando um bom romance é adaptado para o cinema, sempre soa meio preguiçoso o tipo de crítica que diz: “O livro é melhor do que o filme”. Mas em se tratando de “The Lost Daughter”, estreia como diretora da atriz Maggie Gylenhaal, que disputa o Leão de Ouro no Festival de Veneza, é quase impossível não recorrer a esse lugar-comum.

O livro "A Filha Perdida", da napolitana Elena Ferrante, tem tantos detalhes importantes que a versão fílmica deixa escapar que é quase uma lástima que o projeto tenha um dia sequer saído do papel. Projeto, aliás, que teve o aval da própria escritora, cuja real identidade ainda hoje permanece obscura.

“Queria muito poder dizer a todo mundo que sei quem ela [Elena] é, mas infelizmente eu não sei”, disse Gyllenhaal à imprensa. “Só nos falamos por correspondência. Escrevi pedindo os direitos do livro, então ela respondeu, dizendo que o contrato não aconteceria se eu não dirigisse. Vi nisso um voto de confiança cósmico, vindo de não sei exatamente onde”, revelou a atriz-diretora.

Não é que a adaptação de Gyllenhaal seja precária, ou propriamente ruim. O problema é mesmo a natureza do livro de Ferrante —um mergulho na mente de uma mulher, Leda, que passa o livro todo apresentando ao leitor suas sempre fascinantes, e por vezes inusitadas, percepções sobre o que a rodeia e as sensações ambivalentes diante do que lhe acontece. Tornar esse tipo de material tão abstrato em algo palpável na tela é extremamente difícil —impossível, talvez.

A diretora de primeira viagem faz o que pode, e consegue realizar um filme até certo ponto fluido, que tem lá seus pontos de interesse. Na trama, Leda é uma professora universitária que viaja sozinha de férias, indo descansar em um vilarejo praiano. Ali, conhece a jovem Nina e a pequena Elena, mãe e filha, e passa a observá-las com atenção.

A forte ligação entre as duas a faz pensar em sua própria relação com suas duas filhas, hoje adultas, e das dificuldades que teve ao criá-las —em um período de crise, quando ainda eram crianças, chegou a abandoná-las para poder se reencontrar.

“Muito habitualmente, nós somos apresentadas em livros a coisas bacanas sobre nós, quando na verdade temos um espectro enorme dentro da gente”, diz Gyllenhaal. “Pode ser desconfortável entrar em contato com uma mulher assim como Leda, mas também pode ser reconfortante, porque você também pode perceber outros aspectos e dizer: ‘Ufa, não sou a única a pensar assim’.”

O que torna o livro de Ferrante precioso, e não apenas bom, são justamente esses aspectos inesperados, que o leitor reconhece como sendo parte de si, às vezes sem nem ter ideia disso antes de ler. E há na escrita da autora, para além de seu estilo literário, uma construção extremamente bem feita de espelhamentos entre as relações das personagens —em possibilidades múltiplas, há sempre um elo de natureza materna envolvendo Leda, suas duas filhas, sua mãe, Nina, Elena, Rosaria (que no filme se chama Callie), Boneca e outros.

No longa, essa questão aparece sempre de maneira muito limitada. Quando vemos os flashbacks de Leda e suas filhas pequenas, as cenas parecem existir para apenas reiterar o quanto criar aquelas duas crianças é um estorvo para a mãe, como se fossem uma justificativa para sua fuga de casa.

Mas, no livro, cada episódio entre Leda e as filhas ressalta um aspecto específico sobre a maternidade —ou, em última análise, entre o convívio de duas mulheres. O empobrecimento do material original ao ir para a tela é por vezes constrangedor.

Gyllenhaal até consegue algumas cenas vigorosas, mas todo o trecho em que Leda passa em Londres é uma bagunça —aliás, também no livro é a parte menos inspirada. Felizmente, porém, ela pode contar com a talentosa Jessie Buckley, que interpreta com garra Leda na juventude, embora ela pouco ou nada tenha a ver com a versão mais madura proposta por Colman.

(Da esq. para dir.) Olivia Colman, Maggie Gyllenhaal e Dakota Johnson na 78ª edição do Festival de Cinema de Veneza, em 3 de setembro de 2021 - Miguel Medina/AFP

Pouco importa: é sempre interessante ver tanto a Leda de Colman quanto a de Buckley, ainda que nenhuma das duas tenha muita relação com a criada por Ferrante. Mas são duas atrizes que têm o dom de segurar o espectador.

O fato de o filme ter sido apresentado em Veneza apenas dois dias após o magnífico “Madres Paralelas”, o estudo de Pedro Almodóvar sobre a maternidade que atinge níveis bem mais profundos, acaba prejudicando ainda mais o potencial de “The Lost Daughter”. Para um primeiro filme, é um trabalho satisfatório, mas talvez fosse melhor que Gyllenhaal começasse com um material menos complicado.

A cineasta diz que, enquanto lia Ferrante, sentia tal deslumbramento que achou que seria um desperdício que sua relação com o livro se restringisse só às leituras em seu quarto. Mas se o universo que criou em sua cabeça corresponde ao que conseguiu transpor para seu filme, então a leitura foi boa, mas bem aquém do potencial que a obra permitia.

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