Cultura em SP é para quem gosta ou não de Bolsonaro, diz nova secretária municipal

Aline Torres afirma não ter problemas ideológicos com prefeito Ricardo Nunes e lança editais para a periferia

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Aline Torres, nova secretária municipal da Cultura de São Paulo, no edifício Sampaio Moreira Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

A cultura da cidade de São Paulo terá mais verbas públicas no ano que vem —serão R$ 750 milhões em relação aos R$ 609 milhões destinados pela prefeitura para a área neste ano. Isso é o que garante a nova secretária da pasta, Aline Torres, que assumiu o cargo há cerca de duas semanas, após a saída repentina de Alê Youssef, motivada, segundo ele, pela previsão de diminuição do orçamento para o setor, entre outros fatores.

“Queria dizer que a gente foi vítima de uma grande fake news, porque foi aprovado na Câmara um aumento para 2022 do orçamento. Não teria como o prefeito diminuir esse orçamento”, ela afirma, em entrevista na sala de seu gabinete, no Sampaio Moreira, um edifício de 1924 com vista para o vale do Anhangabaú considerado o primeiro arranha-céu de São Paulo, com 12 andares e 50 metros de altura.

Filiada ao MDB, mesmo partido do prefeito Ricardo Nunes, depois de 17 anos no PSDB, a relações públicas é a primeira mulher negra a ocupar o cargo. Há na sala de espera da secretaria uma parede com os retratos em preto e branco dos 18 secretários anteriores, começando por Sábato Magaldi, em 1975. Fica claro que a administração da cultura da maior cidade da América Latina se deu sobretudo por homens brancos, boa parte deles ligados ao centro, e não à periferia, como ela, criada em Pirituba, na zona norte paulistana.

Ao ser convidada inesperadamente pelo prefeito para assumir o cargo, Torres, de 35 anos, conta ter recebido mensagens de meninas, de mulheres e de homens negros que não conhecia, dizendo a ela que podem sonhar ao verem uma mulher negra e periférica nesse lugar. Sua gestão, ela diz, deve se dedicar a atingir justamente esse público —ela fala em descentralizar a cultura e garantir que equipamentos culturais em bairros como Brasilândia, Jaraguá e Perus, por exemplo, tenham programação cultural o tempo todo.

“Imagina uma criança que mora numa casa de esgoto a céu aberto, como as que eu atendia lá no CCJ [Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, do qual foi diretora por mais de um ano], e aí ela ia lá para assistir a uma contação de história e se via princesa no castelo. A cultura possibilitou que essa menina pudesse sonhar em um dia sair daquela casa e trabalhar de alguma coisa e querer ser uma princesa de verdade. É importante a gente sonhar, numa sociedade tão cheia de concreto, tão cinza.”

Idealismo à parte, os planos de Torres também devem atender a uma demanda do prefeito, ela conta. Nunes pediu a ela e a sua equipe que fizesse da cultura um instrumento de retomada econômica no pós-pandemia. Na prática, isso significa o pagamento de editais voltados para a periferia que estão atrasados —ela diz não saber os motivos— e a criação de uma nova linha de fomento direto de R$ 2 milhões para 20 projetos de produtores também periféricos.

Ao pedir demissão do cargo, Youssef também falou em incompatibilidades ideológicas com o atual prefeito. O fundador do bloco Baixo Augusta havia sido uma escolha do ex-prefeito Bruno Covas, do PSDB, para a gestão municipal em 2019. O tucano buscou nele o componente mais à esquerda de sua administração.

Com a morte de Covas de câncer, em maio, Nunes assumiu o posto com a promessa de continuidade total. No entanto, servidores próximos a Youssef apontaram que ele tinha pouca interlocução com Nunes, considerado uma liderança conservadora.

“O prefeito Ricardo Nunes é um cara extremamente democrático e muito aberto ao diálogo e, pelo que eu sei, ele abriu o diálogo diversas vezes com o secretário Alê Youssef. Então eu não sei aonde o Alê realmente teve problemas com isso. Eu não tenho problemas ideológicos com o Ricardo [Nunes]“, diz a nova secretária. Ela afirma que Nunes está preocupado em mudar a vida das pessoas e diz não achar que ele “tenha colocado ideologia em cima de alguma coisa”.

Diferentemente de seu antecessor, que com frequência posicionava a secretaria como um campo anti-Bolsonaro, como por exemplo na realização do festival Verão Sem Censura, com a exibição de obras barradas pelo governo federal, a nova secretária afirma que está no cargo para “fazer política pública para quem gosta e para quem não gosta do Bolsonaro, para quem votou e para quem não votou no Bolsonaro”.

Segundo ela, a secretaria paulistana tem pouquíssima relação com a pasta federal da Cultura e o máximo que o órgão da cidade de São Paulo fez foi pedir a transferência da gestão da Cinemateca para a alçada do município, até agora sem sucesso. Um incêndio consumiu boa parte do acervo de um depósito da instituição na Vila Leopoldina, no final de julho, e o governo do estado também havia pedido para o governo Bolsonaro a guarda dos prédios e a administração da Cinemateca.

Torres, apesar do aspecto conciliador, não deixa de fazer críticas. Quando questionada sobre como avalia a gestão do secretário especial da Cultura, Mario Frias, ela afirma achar “que ele era um melhor ator”. A respeito de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, diz que “é triste a gente ter uma pessoa que vai 100% contra tudo pelo que o movimento negro lutou, mas a democracia é isso aí, a gente precisa esperar essa eleição passar e rezar para que a população vote direito”.

Seu tom de convite ao diálogo se estende às suas redes sociais, onde não há críticas diretas ao governo federal, outra diferença marcante em relação a Youssef, que usava sem pudores a hashtag #forabolsonaro. Torres, contudo, não esconde as causas que defende —em seu Instagram, por exemplo, há posts a favor da democracia, da leitura e do antirracismo, como uma foto na qual ela aparece lendo um livro da filósofa e ativista negra e feminista Angela Davis.

Em relação aos grandes eventos do calendário de 2022, ela promete manter as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna bem parecidas com as planejadas por Youssef, já que diz considerar o projeto “muito legal”, graças ao seu caráter descentralizado e à releitura atual que faz do modernismo, mas acrescenta que vai escolher alguns nomes para deixar a programação mais com a sua cara.

Por fim, afirma achar viável que o Carnaval aconteça, se o ritmo da vacinação seguir em crescimento. Isso, contudo, depende de um aval da secretaria de Saúde que ainda não veio, já que o evento será coordenado pelas duas pastas devido à pandemia. “Eu, que sou de samba, não vejo a hora. Então, se depender de mim, teremos Carnaval.”

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