Eventos do 7 de Setembro evocam imagens da Brasília desumana pré-golpe de 1964

Fotos das demonstrações militares foram esquecidas, mas são fundamentais para o processo de construção da cidade

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soldados em brasília

Soldados participam de exercício militar em Brasília pouco antes do golpe de 1964 Juvenil de Souza/Reprodução

Ciro Miguel

Arquiteto, fotógrafo e doutorando no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique

Numa entrevista recente, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz afirmou que imagens não são só registros de um momento, mas também produzem ativamente todo o seu contexto.

Meses antes do golpe de 1964, os militares promoveram algumas demonstrações de força em Brasília, construindo uma retórica visual militar amplificada pela grande disseminação do fotojornalismo e das agências internacionais de notícias.

Mais de 50 anos depois, essas fotografias reverberam as estratégias visuais do atual governo, normalizando imagens de tanques e multidões com os edifícios de Brasília de pano de fundo.

De fato, o reconhecimento do poder simbólico e instrumental dessas imagens se confirmou durante a convocação das manifestações do 7 de Setembro, nas quais o presidente Jair Bolsonaro enfatizou sua intenção midiática de produzir uma "fotografia para o mundo".

A bordo de um helicóptero, o presidente validava o evento fotográfico, no qual encenava uma narrativa visual que comunicasse a sensação de que os seus apoiadores tomavam posse da cidade. A vista aérea daria a escala da mobilização, usando os amplos espaços da Esplanada e da distância modular entre os ministérios como referência.

As espetaculares imagens de Brasília, desde sua construção até hoje, confirmam a predisposição midiática da cidade e de seus edifícios concebidos para serem fotografados. Se a arquitetura da nova capital foi explorada como cenário surreal para os malabarismos do ator francês Jean-Paul Belmondo em "O Homem do Rio", de 1964, em breve Brasília se consolidaria como cenário de fato, verdadeiro mise-en-scène do regime militar.

São precisamente as imagens de tanques de guerra em ruas desertas propagandeadas pela ditadura, que Bolsonaro insiste em recriar, que selaram o destino de Brasília na história da arquitetura como cidade-monumento, vazia, autoritária e desumana.

Apesar de publicadas no mundo todo, essas fotografias de Brasília às vésperas do golpe foram, na sua maioria, esquecidas. Com a falência das revistas ilustradas, a venda de acervos fotográficos e a morte de fotojornalistas, muito material se perdeu.

cena de filme
O ator francês Jean-Paul Belmondo no cartaz de 'O Homem do Rio', filme de Phillipe de Broca de 1964 - Divulgação

Minha pesquisa de doutorado no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, "A Arquitetura de Brasília pelas Lentes do Fotojornalismo," reconstrói algumas lacunas desses arquivos, apresentando fotografias não como meras ilustrações, mas como representações fundamentais do processo de construção de Brasília.

Além de transformar Brasília num fenômeno global de mídia, essas imagens registradas pelo jornalismo fotográfico moderno compõem uma dramatização dos dilemas da experiência moderna no planalto central, com personagens marginais e micro-histórias geralmente excluídas do discurso visual da arquitetura e do urbanismo.

Desde o início das obras, Brasília foi um cenário importante das batalhas políticas da Guerra Fria na América Latina. Disputando espaço nas populares revistas ilustradas e jornais, figuras importantes como Dwight Eisenhower, Fidel Castro e André Malraux foram fotografados junto a Juscelino Kubitschek e aos primeiros edifícios da cidade no final dos anos 1950.

Essas imagens não só criavam um sentimento coletivo favorável à polêmica decisão da mudança da capital como produziam a noção de um Brasil relevante geopoliticamente na época.

Já com Brasília feita e sob o comando de Jânio Quadros, o líder revolucionário argentino Che Guevara e o cosmonauta russo Yuri Gagarin também foram recebidos, condecorados e fotografados na cidade.

A extensa cobertura fotojornalística das frequentes visitas de ícones comunistas reforçava a chamada política externa independente do governo brasileiro e, ao mesmo tempo, afastava o apoio dos militares.

Enquanto o presidente João Goulart se preparava para receber Josep Tito, líder da Iugoslávia, dois eventos midiáticos foram cruciais para intimidar o governo e desestabilizar, pela primeira vez, o cenário progressista de Brasília, construído a partir das imaculadas imagens de arquitetura da nova capital.

Em setembro de 1963, cerca de 650 sargentos da Marinha e Aeronáutica tomaram Brasília. Revoltados com a decisão do Supremo Tribunal Federal de reprovar a elegibilidade de militares a cargos políticos, os sargentos organizaram um motim na cidade.

Apesar do fracasso da insurreição, as imagens capturadas pelas câmeras portáteis Leica e Rolleiflex dos fotojornalistas fortaleciam a possibilidade de violência e ação armada.

Nessas fotografias, tanques, soldados e metralhadoras se justapõem, como fotomontagens, à arquitetura abstrata de Oscar Niemeyer e aos amplos espaços do Plano Piloto de Lucio Costa. Brasília, a "capital da esperança" nas palavras de André Malraux, era agora a capital sitiada.

No mês seguinte, enquanto João Goulart ameaçava um estado de sítio, os militares promoveram um evento fotográfico em Brasília com grande carga simbólica. Cinquenta e cinco paraquedistas do Exército desceram estrategicamente em frente ao icônico prédio do Congresso Nacional.

Tanto as fotografias de Jankiel Gonczarowska —um livro sobre ele, organizado por sua filha Sandra Gonczarowska Mussi, está previsto para ser lançado em novembro deste ano pela editora Brasileira— como a fotografia anônima de uma agência de notícias atestam a ousadia do exercício militar, a demonstração de força e a efetividade do registro fotográfico.

Apesar de os militares alegarem que o evento foi mera coincidência, a mensagem visual não poderia ser mais clara naquele momento: o poder agora vinha de cima. Enquanto os paraquedistas pousavam gentilmente no gramado do Eixo Monumental, a multidão atônita assistia ao espetáculo.

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