Semana de 22 norteia mostra sobre onde e quando surgiu o modernismo feito no Brasil

Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros montam grande exposição do centenário do evento com obras icônicas

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Pintura de cena de homem tocando viola sentado na janela; do lado de fora, uma mulher com lenço no pescoço acompanha a música cantando

'O Violeiro', obra de 1899 de Almeida Júnior, que está na mostra 'Moderno onde? Moderno quando?' sobre a Semana de 22 no Museu de Arte Moderna de São Paulo Isabella Matheus/Divulgação

São Paulo

Uma fotopintura de Valério Vieira mostra o Theatro Municipal de São Paulo e todo seu entorno abarrotados de cidadãos que chegaram para a inauguração do espaço, em 1911. Eram tempos de uma ideia de modernidade ecoando da Europa, de um jazz que, dos Estados Unidos, marcava uma nova década. De uma atmosfera urbana que se adensava.

No Brasil, despontava também a primeira geração de adultos negros não escravizados —negros que em "Os Noivos", pintura de Guignard, aparecem bem vestidos e com empregos, ou seja, dignificados.

Essa intenção do moderno atravessou as artes plásticas, a arquitetura, a literatura. Nas artes, essa nova atmosfera foi acompanhada pela busca de uma ruptura acadêmica e de uma identidade nacional —e a Semana de Arte Moderna de 1922, a partir da segunda metade do século 20, ficou como o divisor, em alguma medida, do que era velho e do que passou a ser o moderno.

Mas, poucos meses antes do centenário do evento, completado em fevereiro do ano que vem, "Moderno Onde? Moderno Quando? A Semana de 22 como Motivação", mostra organizada por Regina Teixeira de Barros e Aracy Amaral, quer alargar a ideia que se tem do modernismo brasileiro e mostrar que ele não se limitou nem ao ano de 1922 nem a São Paulo.

"Em 1972, ou seja, 50 anos depois da Semana de 22, há muitos eventos que vão recuperar a semana, muitos evidentemente em São Paulo", diz Regina Teixeira de Barros. "A partir desse momento é que a gente vê a semana crescer em importância e essa narrativa, de um divisor de águas, se consolidar."

Antes disso, ressalta a pesquisadora, o balanço que Mário de Andrade fez na década de 1940 em meio à Segunda Guerra tinha um tom amargo, de quem não viu o evento engajado politicamente como tinha de ser.

O "quando" do nome da mostra está marcado já nas duas obras lembradas até aqui, de Valério Vieira e de Guignard, com a primeira delas feita antes da Semana de 22 e com a segunda produzida já próxima dos anos 1940.

Já o "onde" se refere à importância de outros lugares do país nessa construção do moderno, que extrapola a figura central em que o Sudeste e, especialmente, São Paulo e Rio de Janeiro, foram enquadrados — e isso está apresentado em obras de artistas como Vicente do Rego Monteiro, do Recife, e Ismael Nery, de Belém.

A cronologia da exposição caminha dos pré-modernistas rumo à Semana de 22 e, então, para o que vem nas décadas seguintes —isso da belle époque de 1900 até o Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1937. A tônica dessas décadas também é detalhada num vídeo com os principais acontecimentos de cada um desses anos.

O fio que costura esses períodos é justamente o da intenção de modernidade. A começar pelas mudanças sociais profundas que chegam nas obras já dos pré-modernistas, como o da presença do negro enquanto artista, caso do artista Artur Timóteo, e enquanto tema, como quando é retratado pelo lituano Lasar Segall.

São negros livres, é importante ressaltar. "Algumas obras já haviam sido colocadas em grande destaque quando focalizavam o escravo, mas agora já é o homem livre", diz Aracy Amaral. "O Brasil passa, do ponto de vista social, por uma revolução, de tentativa de mudança de mentalidades. É uma tentativa, como você sabe, que nós ainda estamos vivendo."

As alterações plásticas também estão lá, como as pinceladas expressionistas e futuristas que flertam com pinturas das vanguardas europeias. Também começa a moldar a arquitetura, como mostra uma maquete da estação de Mairinque, no interior paulista. Ali, Victor Dubugras levanta um edifício sem ornamentos, de arquitetura racionalista e moderna.

Depois de passar por obras que mostram a nova cara das cidades brasileiras, como a própria fotopintura do Municipal, se chega ao desfile de obras que estiveram na Semana de 22 —o programa do evento no Municipal também faz parte da exposição do MAM. É o caso da "A Boba" de Anitta Mafaltti, ou do emblemático "Retrato do Desembargador Gabriel Gonçalves Gomide" feito por John Graz.

Isabella Matheus/Divulgação
'Coqueiros', da década de 1930, de Regina Gomide e John Graz - Tapeçaria colorida com coqueiros geometrizados

​Os trabalhos que aparecem nos anos seguintes, aliás, apontam uma semelhança acentuada com o Brasil de hoje. O álbum já de 1933 "A Realidade Brasileira", de Di Cavalcanti, figura que atravessa todos os períodos da mostra, satiriza o militarismo daquela época anunciando uma "parada da vitória" onde "Deus vela pelo Brasil".

Esses anos 1930 também marcam uma agitação política que engaja parte dos artistas com mais força do que se tinha visto até então.

"A principio, os modernistas não se manifestaram politicamente a partir de meados da década de 1920, ou a partir da revolta do Forte de Copacabana em novembro de 1928 e depois a revolução de Isidoro Dias Lopes, em 1924", afirma Amaral.

"Há toda uma insurreição inovadora que não existia, por exemplo, até 1922. Há uma insureição inclusive em parte de escritores e poetas, mas, para os artistas plásticos, na verdade, isso só vai se revelar no fim da década."

Até então, conta Regina Teixeira de Barros, o objetivo das obras não era o retrato do trabalhador, do homem brasileiro, como Candido Portinari faria a seguir. O caminho da produção artística margeava os animais e as lendas brasileiras, até que a figura do homem popular começa a ganhar tração, em especial pela influência de Mário de Andrade.

De volta à exposição, esses tipos brasileiros se manifestam, por exemplo, nos trabalhadores rurais de "Café", do Di Cavalcanti, com seus pés e bocas agigantados. Nessas obras depois da Semana de 22 há também a busca por uma ideia de brasilidade, como a que Tarsila do Amaral ensaia na paisagem em "Floresta", ou que Cícero Dias marca de maneira mais íntima em "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife".

O trajeto rumo à década de 1940 é marcado pela presença do surrealismo nas pinturas de Ismael Nery e nas perguntas teológicas que Flávio de Carvalho levanta em duas obras expostas na mostra.

E também pela continuidade dos tipos populares em contextos urbanos, que fecham o passeio pela ordem indicada pelas organizadoras —xilogravuras de Lívio Abramo exibindo imagens de operários encerram esse percurso rumo ao moderno à brasileira.

Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação

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