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Livros África

Trilogia 'Binti' é ficção que apela ao futuro e à ancestralidade negra

Nnedi Okorafor reverencia saberes africanos e desloca a matemática do sentido eurocêntrico da razão científica

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Pétala Souza

Escritora e produtora de conteúdo literário no projeto Afrofuturas

Binti: Trilogia Completa

  • Preço R$ 54,90 (378 págs.); R$ 38,90 (ebook)
  • Autor Nnedi Okorafor
  • Editora Galera
  • Tradução Carla Bettelli

Nnedi Okorafor, premiada autora nigero-americano, cuja ficção tem sido celebrada pelas comunidades de ficção científica nos dois lados do Atlântico, mostra em sua trilogia “Binti” uma visão generosa de um futuro construído pelas lentes de uma cosmovisão centrada na África.

Sem desperdiçar sentidos e sabendo trabalhar com refinado senso de propósito, a autora, que é uma das maiores referências da ficção especulativa negra, reverencia culturas africanas fazendo amplo uso do fantástico e do real na construção de universos que exploram tanto os aspectos sociais quanto os anseios e o imaginário que constrói a contemporaneidade.

As três novelas de Okorafor que compõem a trilogia publicada pela Galera Record em um volume único —"Binti", "Binti: Lar" e "Binti: O Mascarado da Noite"— são todas ambientadas parte na África Ocidental, parte fora do planeta Terra, o que dá à jornada da heroína Binti, que nomeia a trilogia, conexões próprias com debates atuais sobre e na diáspora africana.

mulher negra pinta o rosto com tinta laranja
Capa da trilogia 'Binti', da escritora americana Nnedi Okorafor, publicada em um só volume pela Galera, da Record - Divulgação

Acompanhar Binti, a primeira pessoa do povo himba que aceitou ir para a UniOomza, a melhor universidade da galáxia, para buscar saberes além dos de seu povo, ao mesmo tempo em que vai expondo a distância entre lugares de construção de saberes tradicionais em relação à chamada modernidade, revela os impostos culturais cobrados à pessoa em diáspora.

Esses dois sentidos, que fazem parte da jornada da protagonista, podem ser entendidos quando seus parentes rejeitam sua aventura espacial para a universidade porque na cultura de seu povo existe forte resistência a sair de casa.

Somado a isso, a aventura espacial que a leva para um mundo desconhecido ainda abrange o anseio da protagonista de 16 anos de afirmar seu lugar no mundo, para além do que tinha em casa e entre o seu próprio povo.

Resulta numa ficção com forte apelo não só ao futuro, mas também ao que é ancestral. Será a herança de seu povo que proporcionará a Binti a oportunidade para construir uma ponte entre ela e o outro.

Quando Binti decide deixar sua terra natal, ela carrega consigo três objetos que ajudam a entender a relação da personagem com a matemática, a ciência e a tecnologia.

O primeiro é seu astrolábio —um dispositivo multifuncional que também armazena todas as informações sobre uma pessoa, incluindo futuros possíveis—, seu otjize —mistura de argila vermelha e óleo perfumado que Binti carrega em sua pele e tranças— e seu edan —um artefato tecnológico antigo e em desuso.

Tanto o otjize quanto o povo himba integram as várias referências reais na qual a autora se baseou para dar identidade a Binti. Como de fato acontece na tradição himba, as mulheres aplicam o otjize da cabeça aos pés, algo que serve tanto para estética quanto para saúde do povo.

Na sua jornada para o exterior, usar o otjize mantém Binti ligada à origem que fortalece sua identidade mesmo longe de casa. Mais tarde, quando percebe o valor do otjize na cura de um povo inimigo que pede para levar essa pasta poderosa, Binti se recusa a entregar, dizendo que tirar seu otjize é como tirar sua cultura.

Será através desse tipo de interação que a autora desenvolverá mais aspectos relevantes a questões de identidade e alteridade. Logo no início, ao embarcar a personagem em uma nave do povo khoush, Okorafor começa a trançar o pano de fundo de marginalização e o estado de ser um "outro" no contexto da formação da heroína.

Embora seu povo possua habilidades técnico-matemáticas, eles são considerados inferiores. Os khoush são os primeiros a demonstrar aspectos de dominância na história, sujeitando Binti a humilhação e discursos etnocêntricos que integram os conflitos étnicos no contexto do futuro multicultural reimaginado pela autora.

É desse lugar de conflitos étnicos que Okorafor aproveita o referencial real e o fantástico incorporado à cultura do povo himba para reafirmar a identidade africana invisibilizada no cânone da ciência e dos saberes tecnológicos.

A trilogia, enquanto reverencia os saberes africanos da protagonista, oferece um reposicionamento do imaginário do que é a matemática como ciência deslocando a disciplina do sentido eurocêntrico de razão científica. Na ficção afrofuturista de Okorafor, a ciência não dissociada da tradição e cultura ancestral da África é um veículo para desvincular a sabedoria africana do passado.

O domínio científico de Binti em harmonia com sua espiritualidade desafia o leitor a compreender um fazer científico que não segue paradigmas ocidentais e refuta noções de origem colonial sobre culturas indígenas africanas.

A continuidade que Okorafor trança entre matemática, espiritualidade e ciência ao longo da leitura vai criando uma espécie de matemática transcendental. O universo de Binti entrelaça passado e futuro com tecnologias que não se diferenciam da vida orgânica.

Okorafor já descreveu sua forma de criação como “fantasia orgânica”. Quanto mais adentramos a lógica que gere o fantástico em Binti, mais entendemos isso. Nela, toda tecnologia é viva e toda vida é potencialmente tecnológica. É um futuro que compreende que a natureza é a maior tecnologia que existe.

A trilogia de Okorafor desvia de modelos de ficção científica postos pela tradição literária branca e ocidental, subverte representações estereotipadas de mulheres negras e africanas e mostra a potencialidade das culturas africanas em sua protagonista, Binti, que atua como uma referência para qualquer pessoa que pretenda refletir sobre a construção de novos futuros.

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