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Francesco Perrotta-Bosch

Brasil deve investir na preservação dos arquivos de seus arquitetos

Já sem Lucio Costa, país deve criar instituição que comece por acervos que estão sem uma salvaguarda sólida

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Francesco Perrotta-Bosch

Autor de 'Lina: Uma Biografia' e doutorando da FAU-USP e da Universidade IUAV de Veneza

Em 1580 morreu Andrea Palladio, grande arquiteto vêneto que projetou a igreja do Redentor e a fachada da igreja de São Jorge em Veneza, a basílica Palladiana e o teatro Olímpico em Vicenza, a Villa Capra, dita Rotonda, dando um novo sentido ao que entendemos por proporção, simetria, em síntese, no que entendemos por arquitetura.

Em 1613, uma parte considerável dos desenhos de Palladio foram adquiridos por Inigo Jones, considerado o primeiro arquiteto inglês e uma espécie de avô do que hoje chamamos de ópera. Em 1719, o lorde Burlington levou outros desenhos originais e reconstituições da Antiguidade feitas por Palladio que estavam na Villa Barbaro, na vêneta Maser.

Atualmente, essas duas coleções transportadas para o Reino Unido compõem o maior conjunto existente de fontes primárias sobre o arquiteto do século 16 –os mais de 300 documentos originais estão depositados no Real Instituto de Arquitetos Britânicos e podem ser vistos em baixa resolução no seu site. Não há coleção tão grande de desenhos de Palladio na Itália.

foto preto e branco mostra homem calvo e de bigode, vestindo terno e gravata, num escritório, tendo ao fundo mesa com papéis empilhados ao fundo
O arquiteto e urbanista Lucio Costa (1902-1998), cujo acervo foi doado para a Casa da Arquitectura, em Portugal - Espólio Lucio Costa/Acervo Casa da Arquitectura

Não escrevo essa longa introdução para justificar a ida de cerca de 11 mil documentos de Lucio Costa para a Casa da Arquitectura, na cidade de Matosinhos, em Portugal. Só rabisco tais palavras para negar que o deslocamento de documentos arquitetônicos seja um "fenômeno novo" e pega pessoas desprevenidamente. Desde o século 17, acervos de grandes arquitetos ficam com quem se organiza primeiro.

Uma breve digressão –contextualmente, a facilidade com que lorde Burlington levou os desenhos de Palladio era um indício demonstrativo da decadência político-econômica da Sereníssima República de Veneza, país que veio a ser extinto por Napoleão décadas depois.

Num primeiro olhar, a ida do acervo de doutor Lucio —minha formação carioca, meu afeto pela sua obra e a necessária reverência me obrigam a usar essa distinção a partir daqui— para Portugal parece uma repetição da doação dos documentos de Paulo Mendes da Rocha no ano passado. Mas não se trata de mais do mesmo.

O arquiteto carioca nascido na francesa Toulon dava ênfase na distinção entre rabisco, croqui e risco. "Risco é desenho não só quando quer compreender ou significar, mas fazer, construir", escreveu doutor Lucio. Sua obra arquitetônica não se limita a incríveis riscos como os do palácio Capanema, certidão de nascimento da arquitetura brasileira da qual é coautor.

Em textos à mão ou datilografados com comentários e correções à caneta feitas pelo intelectual, encontraremos a gênese de Brasília —concurso que venceu por meio de sua esclarecedora escrita—, a construção do personagem Oscar Niemeyer como homem genial —basta ler "Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre" de 1951—, trocas de cartas com frutíferos diálogos estabelecidos com interlocutores da estatura de Le Corbusier.

Por princípio, quem quiser pesquisar sobre o Brasil no século 20, não no sentido da curiosidade por um intelectual, mas para compreender um projeto de Estado nacional —algo que Paulo Mendes da Rocha nunca ambicionou—, é inevitável passar pelo arquivo de doutor Lucio.

Seus "registros de uma vivência", feliz título de seu fundamental livro com uma amostra do acervo que foi para Portugal, contêm um valor público sobretudo ao revelar as ideias para a construção de instituições junto ao governo brasileiro. Por isso, o arquivo de Lucio Costa transborda em muito o âmbito individual, valor este que nenhuma outra coleção de arquiteto brasileiro nos oferecerá.

De tão rico, encontramos nos seus registros, inclusive, o precedente para o impasse atual. Quando se percebeu a necessidade de salvaguarda do patrimônio artístico e arquitetônico brasileiro, doutor Lucio teve participação central no grupo de intelectuais que fundaram o Sphan, atual Iphan. Tendo esse exemplo de 1937, é urgente que criemos uma instituição para a guarda e a difusão dos documentos de arquitetos brasileiros.

O trabalho dos acervos arquitetônicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo não devem ser ignorados, mas é preciso assumir que precisamos de uma instituição independente cuja a finalidade única e principal sejam os acervos em si. Uma organização que centralize a captação de recursos e investimentos na catalogação e conservação para, no segundo momento, dar suporte a pesquisa acadêmica.

Tal iniciativa não pode vir de pessoas físicas, mas sim de uma amarração institucional que envolva o Conselho de Arquitetura e Urbanismo —a entidade arquitetônica com muita verba— e os departamentos nacional e regionais do Instituto de Arquitetos do Brasil, cuja estrutura de funcionamento é mais apropriada para gestar uma nova instituição.

Faculdades de arquitetura e biblioteconomia devem ser envolvidas na formação de equipes, isto é, cérebros. Parcerias e aportes de governos municipais e estaduais são bem vindos para infraestrutura física e digital. Se durante a presidência Bolsonaro parece quixotesco incentivar a criação de uma nova instituição, cabe lembrar que governos passam e que esse instituto de acervos brasileiros pode nascer no seio de órgãos de classe para, no futuro, se tornar do Estado brasileiro.

Paulo Mendes da Rocha e Lucio Costa são arquitetos com grande interesse internacional, mas muitos arquivos de outros arquitetos brasileiros podem ser perdidos com o tempo por falta de um órgão interessado em recepcioná-los. O Centro Canadense de Arquitetura do Canadá, o Riba na Inglaterra, a Casa da Arquitectura em Portugal seguirão interessados por alguns e vão ignorar outros.

Cabe ao Brasil criar uma instituição de mesmo propósito, começando com acervos que não estão sob uma salvaguarda institucional sólida como o de João Filgueiras Lima, o Lelé, de Éolo Maia, ou mesmo de Oscar Niemeyer, fundamental porém fragmentado em disputas familiares.

Não adianta escrever textos de redes sociais ou mensagens privadas de WhatsApp com discursos inflamados, reclamando do colonialismo, colocando-nos no papel de vítima —acaba sendo uma repetição da postura de David Luiz a caminho do vestiário, após o 7 a 1, chorando e falando que "só queria dar alegria para meu povo".

Nos últimos anos, surgiram acervos pontuais como Hans Broos, que são iniciativas muito simpáticas mas insuficientes —no panorama geral parecemos o Felipão escalando o Bernard, o "menino com alegria nas pernas", numa semifinal de Copa do Mundo. E provavelmente ainda teremos um crítico de arquitetura brasileiro fazendo uma nova versão da "cartinha da dona Lucia" com malabarismos verbais para dizer que tem orgulho do país e que vai ficar tudo bem. Não está tudo bem.

Também não cabe à imprensa adjetivar a Casa da Arquitetura, ficar encantada com orçamento em euros e se acomodar na publicação de artigos de análise e opinião. Cabe aos jornais buscar a prestação de contas. Questionar a Casa da Arquitetura como será esta plataforma de divulgação digital? Tendo em vista que são cerca de 9.000 itens de Paulo Mendes da Rocha, 11 mil de doutor Lucio e outros tantos ligados à exposição "Infinito Vão", já me parece o suficiente para perguntar quando esta plataforma estará disponível? Quantas pessoas na Casa da Arquitetura estão trabalhando na área de arquivos? Como será o intercâmbio entre Brasil e Portugal no programa de bolsas de pesquisa para o trabalho in loco no arquivo? Muitas perguntas não estão sendo feitas.

Com relação à família Costa, principalmente Julieta e Maria Elisa, eu compreendo a dificuldade e os riscos de manutenção do acervo. Não vejo culpa na decisão delas. Realmente não há instituição a receber no Brasil de hoje. Me questiono apenas o motivo do acervo da casa de Lucio Costa ter se mantido particular e não ter ido para arquivos públicos, como o do Iphan, quando a conjuntura política era plausível há 15 anos.

Nós, enquanto classe arquitetônica brasileira e eu me incluo pessoalmente no mea culpa, temos cometido muitos erros nos últimos anos. É hora de nos preparamos para entrar na disputa mundial em curso por arquivos de bons arquitetos. Vamos ser profissionais, criar uma instituição, e começar a jogar a sério essa partida?

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