Descrição de chapéu Onde se fala português

Brasileiros e portugueses usam natureza para revelar sentimentos, diz Carminho

Uma das principais vozes do fado português, artista discorre sobre semelhanças entre as culturas dos dois países

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São Paulo

Na última década, Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, a Carminho, se tornou a cantora portuguesa contemporânea mais ouvida no Brasil. Pesaram, é claro, o apuro técnico e a sensibilidade dessa fadista de 37 anos.

Mas esses atributos não seriam suficientes para a conquista. Foram muitos voos sobre o Atlântico para shows e gravações de duetos com cantores brasileiros.

A cantora portuguesa Carminho se apresenta em festival no Tetro Opus, em São Paulo
A cantora portuguesa Carminho se apresenta em festival no Tetro Opus, em São Paulo - Marcello Fim - 11.jun19/Ofotográfico/Folhapress

O convite de Milton Nascimento para que se apresentassem juntos em Lisboa, em 2012, foi um passo inicial importante para esta aproximação. Mas o encantamento pelo Brasil começou bem antes.

A garota que passou a infância na região do Algarve e se mudou adolescente para Lisboa acompanhava as novelas produzidas pela TV Globo e retransmitidas em Portugal pelos canais RTP1 e SIC, como “Roque Santeiro”. Também ficava atenta às canções que acompanhavam os personagens. Carminho conheceu Tom Jobim, a quem dedicaria um disco em 2016, por meio da teledramaturgia.

Em entrevista ao projeto Onde se Fala Português, ela aponta as principais semelhanças entre as culturas brasileira e portuguesa, como o costume dos compositores dos dois países de traduzir sentimentos por meio de fenômenos da natureza.

Há diversos exemplos desse caminho no repertório dela, como “Lágrimas do Céu”, dos portugueses Carlos Conde e Alfredo Marceneiro –“são as lágrimas do céu / que fazem brotar as minhas”–, e “Sol, Eu e Tu”, dos brasileiros Caetano Veloso, Tom Veloso e Cézar Mendes –“a chuva cai / a Imensidão / geme num ai / e o horizonte revela-se inteiro / neste chão”.

Carminho também fala sobre o que distancia um país do outro, como o jeito de interpretar as músicas. “Brinco que os brasileiros cantam as tristezas em tom maior, e nós, portugueses, cantamos as alegrias em tom menor.” A cantora discorre ainda sobre a nova geração de cantores de fado, a vinda do primeiro filho em meio à pandemia de coronavírus e a paixão pela comida brasileira.

A senhora contou ao jornal português Diário de Notícias que na escola, quando tinha 12, 13 anos, as pessoas diziam que o fado estava fora de moda. Isso mudou? Mudou. O fado tem vivido sempre em círculos, o que está associado à forma como as pessoas em sua época sentem a música. É uma questão geracional. Quando eu era mais pequena, o fado era visto como antiquado, relacionado às pessoas mais velhas, não fazia sentido que fosse cantado por uma criança ou por uma jovem.

Também havia um bocadinho, uma réstia de uma lembrança, que não sei se foi muito justa para o gênero, de sua ligação com a propaganda do regime [salazarista]. Passei grande parte da minha infância na região do Algarve. Vim com meus 12 anos para Lisboa porque minha mãe começou uma casa de fado, a Taverna do Embuçado. De repente, consegui constituir um círculo de amigos que eram muito mais velhos que eu.

Sentia-me parte importante deles e fui construindo minha personalidade até conseguir, finalmente, com 15 ou 16 anos, assumir que não havia nada de errado no gênero, que eu gostava muito e comecei a cantar em casas de fado. Comecei a convidar amigos, jovens como eu. Sentia da seguinte forma: "Se quiserem vir, venham, vou gostar muito que escutem isso. Se não, paciência porque estou segura do que gosto".

Foi assim então que começaram a ouvir e a gostar. Comecei a cantar duas vezes por semana em um lugar muito cool chamado Mesa de Frade, uma pequena capela em Alfama, onde as pessoas se amontoavam, algumas sentadas, outras de pé. Era fascinante sentir essa energia. E, nessa época, existiam outros artistas, mais velhos do que eu, também cantando fado.

Essa revalorização do fado aconteceu graças à sua geração de cantores e à geração anterior? Acaba por ser a mesma geração, só pensávamos com anos de diferença. Acredito que seja a geração que sucede a morte de Amália Rodrigues [1920-1999]. Amália deixou um grande hiato, quase como se o povo ficasse um bocadinho órfão. E não existem novas Amálias. Os tempos infelizmente não se repetem. Ou, melhor, felizmente, porque essa ideia de procurar uma nova Amália é completamente absurda.

Mas a verdade é que o fado precisava de seus representantes, que iriam trazê-lo de novo para as lojas de discos e para os concertos. Isso não quer dizer que exista um novo fado. O gênero apenas reapareceu com mais diversidade, mas sempre esteve lá. E sempre existiram casas de fado, cantores e músicos.

A cantora portuguesa Amália Rodrigues em retrato de 1973; ela morreu em 1999
A cantora portuguesa Amália Rodrigues em retrato de 1973; ela morreu em 1999 - AFP

Quais cantoras e cantores diria que são importantes para o momento que o fado vive? Neste fulgor que estamos a provar, nesta renovação, eu poderia citar Mísia, Mariza; entre os homens, Camané. Os que são mais da minha idade, como António Zambujo, Ricardo Ribeiro, Ana Moura, um pouco mais velha. E agora há uma geração nova, como Tales Mansur. Com estéticas distintas, vão contribuindo à sua maneira.

Como lidou com este período de pandemia? Fiquei prenha bem no meio da pandemia. Foi um tempo, então, para me dedicar a um filho que nasceu no meio da pandemia. Estes primeiros meses foram muito intensos. Eu já tinha me preparado para abrandar um bocadinho para me dedicar à maternidade. Com a pandemia, percebi com mais clareza que deveria estar ao lado do meu filho e da minha família. Também aproveitei para ler e compor, estou a tentar preparar um novo disco, a escolha de um novo repertório.

Nesta busca, é importante haver algum ócio para que se possa encontrar algumas respostas. O tempo me deu alguns frutos. Para pessoas próximas a mim, a pandemia não foi boa. Muitos perderam empregos. Alguns tiveram que mudar de profissão porque não existem mais condições de fazer o que faziam.

Existem planos de voltar ao Brasil? Ainda é cedo. Eu tenho falado com meus agentes brasileiros, que dizem que ainda está muito parado. Eu tinha quatro concertos programados para o Brasil para apresentar o disco “Maria”, mas vieram a gravidez e a pandemia. Acabei por não conseguir apresentar esse disco no Brasil, Deus queira que seja em breve.

A senhora já veio muitas vezes ao Brasil, conhece o país razoavelmente bem. Na sua opinião, quais os principais pontos de ligação entre Brasil e Portugal? A resposta imediata é a língua. É de um encantamento sem medida viajar todo um Atlântico para chegar do outro lado e descobrir poetas e artistas com a mesma língua. É uma ligação infinda, portanto. Tenho uma amiga portuguesa casada com um inglês, e ela diz “a língua não deixa a gente amar como eu queria”. São assim algumas urgências que a pessoa tem, e uma delas é essa.

Depois, temos um grande encontro em termos artísticos. É uma viagem que está sendo feita há séculos, com trocas de instrumentos, partituras, livros, arquitetura. Meus amigos brasileiros vêm para cá e dizem “chego a Lisboa e compreendo a minha cidade, a minha cultura”. Só de ver as casas, as ruas, as escadas.

Veja antes da bossa nova, os sambas de Cartola, por exemplo, que têm construções semelhantes às dos fados daquela época. Não sou acadêmica, mas tenho a minha sensibilidade e sinto quando estou a cantar como se estivesse a cantar um fado. A forma como as melodias são encaminhadas, a temática da poesia… Tanto brasileiros quanto portugueses utilizam fenômenos da natureza para revelar pessoas ou sentimentos. Um dos fados que eu canto tem letra de Carlos Conde, e uma frase diz “são as lágrimas do céu que fazem brotar as minhas”. É uma sabedoria popular que une os dois países.

E quais as diferenças entre os dois países que mais chamam a sua atenção? Brinco que os brasileiros cantam as tristezas em tom maior, e nós, portugueses, cantamos as alegrias em tom menor. Nós somos mais nostálgicos, mais soturnos. No Brasil, muitos sambas têm letras tristes e são cantados com uma energia de uma dignidade que me arrepia. Não podemos generalizar, claro, mas os brasileiros, em geral, têm um jeito mais extrovertido, não deixam que a tristeza os derrube, enquanto o português gosta de ir àqueles lugares onde doeu, existe uma sensibilidade mais triste. Não que o fado não tenha alegrias, tem marchas populares muito parecidas com o frevo. Mas há sempre uma pequena tristeza.

O fado, por exemplo, não é dançado, é muito mais virado para o ato do cantar e do tocar. Se bem que há muitas canções brasileiras com essa doçura da tristeza.

Como se deu a decisão de gravar um disco com canções de Tom Jobim? Gosto de Tom Jobim desde que sou muito pequena. Eu comecei a ouvir as músicas dele nas novelas da Globo, tinha seis, sete anos. Dada altura, comecei a perceber que havia artistas para além dos protagonistas, eram Tom Jobim, Chico Buarque… Comecei a estudar essas canções. Mas eu jamais me atreveria a fazer um disco se não tivesse tido um voto de confiança de alguém muito próximo dele, o que foi uma honra para mim.

Foi um convite da Ana, casada com Tom, e do Paulo, filho dele. Confesso que, apesar da alegria imensa com aquela possibilidade, fiquei super apreensiva e pensei "qual é a pertinência de mais um disco de Tom Jobim no mundo?". Ele criou um estilo muito próprio e intérpretes do mundo inteiro, como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald, cantaram as músicas dele. O que eu vou fazer? Paulo Jobim me disse: “Meu pai não seria adepto de alguém que se sentisse aprisionado. Tu tens tua forma de cantar, teu próprio sotaque, portanto, vamos com coragem, vamos fazer isso”. Aí fiquei confiante, eu iria cantar à minha maneira.

Seu fascínio pela música brasileira começou, então, com as novelas? Acho que a maior parte dos portugueses conhece a cultura brasileira por meio das novelas que apareceram em Portugal, desde “Gabriela”, que foi a primeira [em 1977]. Vocês são os grandes noveleiros do mundo. E há um ponto que é como um serviço público para nós –conseguimos perceber quem é de São Paulo, quem é do Rio, quem é do Nordeste. Esses universos que vocês constroem para cada novela acabam nos fazendo perceber a geografia do país, a cultura de cada região. Assim, nos tornamos conhecedores da música brasileira, Gal Costa, Caetano Veloso… Todos esses artistas fundamentais que estavam, inicialmente, ligados a personagens. Ficamos apaixonados por aquelas canções e aqueles personagens.

Qual dessas novelas foi mais marcante para você? Várias! “Roque Santeiro”, “Pedra sobre Pedra”, “Tieta”... Fiquei colada até o último episódio de “Avenida Brasil”. É fascinante a forma como vocês constroem esses personagens, essas histórias.

Além da música, sobre a qual já falou, o que mais a atrai no país? A comida, a comida.

Alguma específica? Todas [risos]. Aipim frito, escondidinho, feijoada, pastel de feijoada, tudo o que tem a ver com feijoada, as caipirinhas, pastel disso, pastel daquilo, coxinha… Ficava aqui a vida inteira falando, não é? A comida mineira, os queijos. Depois, tenho a sorte, o privilégio de ter amigos muito especiais, que me fizeram crescer como artista de uma maneira extraordinária. É o caso de Chico Buarque, Milton Nascimento, Nana Caymmi, Caetano, Marisa Monte. Tive o privilégio de fazer algumas turnês com o Milton no Brasil e em Portugal. E conheci o imenso da gastronomia porque fomos a Minas. É uma diversidade gastronômica enorme. Por tudo o que já vivi aí e por todas as amizades, o Brasil é a minha segunda casa.

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Carminho em apresentação com Gilberto Gil e a orquestra da USP, sob regência de Gil Jardim, no Dia Internacional da Língua Portuguesa na Sala São Paulo, em 2018 - Eduardo Knapp/Folhapress

Ainda muito jovem, a senhora gravou 'Cais', com Milton Nascimento. Também gravou 'Carolina', com Chico Buarque, e outras canções importantes com nomes de peso da música brasileira. Sentiu um frio na barriga? Em Portugal, vocês usam a expressão 'frio na barriga'? Frio, chuva, tudo, passou tudo nesta barriga [risos]. Em um primeiro momento, o Milton veio fazer um show aqui em Portugal para encerrar as festividades de verão de 2012, e ele me convidou para cantar com ele. Não sei como chegou a mim. Também convidou Zambujo e Ana Moura, e fizemos concertos juntos.

Vinicius França e João Mário Linhares, empresários do Milton àquela altura, me convidaram para trabalhar com eles no Brasil e me perguntaram: “O que tu sonhas no Brasil?”. Eu disse: “Olha, eu tenho sonhos, mas eles são um bocadinho altos demais. Gravar com Chico Buarque, Milton Nascimento e Nana Caymmi”. E não é que eles disseram "sim" [gravaram duetos para “Alma”, o segundo disco dela]?

Lembro que Chico disse que não gravava essa canção havia muitos anos. Ele me falou: “Carminho, eu já nem lembro se essa canção é tão linda assim”. Eu insisti e, no final, ele gostou muito, ficou contente.

Mais tarde, cantei “Sabiá” [no Prêmio da Música Brasileira, em 2013], uma canção muito importante na minha história no Brasil, que me ajudou a compreender minha relação com a música do país. E o Caetano, que viu a apresentação, escreveu generosamente sobre isso, fiquei muito honrada. Depois, ele, o filho Tom e Cézar Mendes fizeram uma canção para mim chamada “O Sol, Eu e Tu”.

Marisa Monte também foi um encontro mágico, uma amizade que nunca vai morrer. Gravamos “Chuva no Mar”, que está no “Canto” [2014], e depois “Estrada do Sol”, no disco dedicado a Tom Jobim [2016].

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