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Artes Cênicas

'Cabaret dos Bichos', adaptação de Orwell, cria atmosfera ingênua

Sátira sobre os perigos do totalitarismo aparece, em filme, apenas como comentário generalista

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Paulo Bio de Toledo

Cabaret dos Bichos

  • Quando Seg. a dom., às 19h. Até 5/11
  • Onde Canal do Núcleo Experimental no Youtube
  • Preço Grátis
  • Classificação 10 anos
  • Elenco Dan Cabral, Luci Salutes, Felipe Assis Brasil e Fernando Lourenção
  • Direção Zé Henrique de Paula
  • Link: https://www.youtube.com/c/N%C3%BAcleoExperimentalSP
  • Música original e direção musical Fernanda Maia

O “Cabaret dos bichos”, adaptação em vídeo do clássico “Animal Farm”, é a segunda incursão do grupo Núcleo Experimental pela obra de George Orwell. Em 2018 estrearam uma versão dramatúrgica da distopia “1984”, também com direção de Zé Henrique de Paula.

As duas obras, escritas em 1945 e 1949, respectivamente, são formulações literárias sobre os mecanismos de um regime totalitário. O alvo da crítica era o stalinismo, que, para o autor, sufocara a energia revolucionária do início do século e, pior, transformava os princípios comunistas em um tipo de retórica modulada para validar as mais inacreditáveis formas de controle social.

Mas apesar da referência história ser bem específica, nos últimos anos o interesse por essas obras de Orwell cresceu no mundo inteiro. A sensação é de que há uma reaparição das formas e dos modos totalitários descritos pelo autor inglês nos anos 1940.

O filme “Cabaret dos Bichos” do Núcleo Experimental faz parte dessa onda e busca assinalar momentos de contato entre a obra de Orwell e nossa realidade em pelo menos dois aspectos: o fortalecimento de projetos autoritários no mundo todo e, sobretudo, a forma fácil como fatos e verdades vêm sendo deliberadamente torcidos, relativizados e manipulados na espiral de mentiras que impregnam o mundo virtual e o debate político.

No trabalho de transposição da obra literária para o vídeo, o grupo compôs uma série de ótimas canções. A maior parte delas possui o mérito de ao mesmo tempo narrar e comentar os acontecimentos da fábula, seja nas letras ambíguas, nas modulações irônicas da voz ou na grandiloquência paródica das melodias.

Essa característica musical está ligada a uma camada nova inserida na obra. Na adaptação criada pelo Núcleo Experimental, quem apresenta a fábula é um grupo de artistas saltimbancos. Maquiagem, figurinos e trabalho corporal dos atores assinalam essa duplicidade ao criar figuras nas quais é visível tanto os animais da Granja dos Bichos como também os artistas meio circenses atuando à maneira de um cabaré.

Só que o cabaré não é bem um estilo de interpretação ou uma poética de cores vibrantes, como o grupo faz parecer. No início do século XX, os cabarés eram caóticos ambientes de diversão noturna, onde conviviam música, dança, esquetes de humor e bebidas alcoólicas. Não existia silêncio, contemplação ou qualquer respeito institucional à arte.

Os artistas atuavam com um olho na cena e outro na audiência, pois era crucial manter desperto o interesse das pessoas. Para isso, valiam-se de toda sorte de efeitos, improvisos, vulgaridades, provocações. Embora fossem formas muito desprezadas nos círculos idealistas da alta cultura, a vitalidade popular e o magnetismo despertado por aquele tipo de ambiente fascinaram os melhores artistas do período.

Entretanto, para ser transformado em um tipo de referencial estético, como é no filme, o cabaré precisa ser desativado enquanto fenômeno social. Sobra só um estereótipo pálido do que foi um dia: apenas brilhos, cores e canções, sem a caótica vida popular que envolvia aquilo tudo. Essa fantasmagoria, somada ao tom bucólico que o filme dá à fábula, fomenta, no final das contas, uma atmosfera onírica, melancólica e também ingênua no andamento de “Cabaret dos bichos”.

O que, por sua vez, faz com que a sátira feroz de Orwell apareça como só mais um comentário óbvio e generalista sobre os perigos do totalitarismo. Um tipo de lição de moral meio empoeirada.

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