Descrição de chapéu
Jão Bubiz

Dave Chappelle transforma homenagem a amiga em escudo para seus equívocos

Se existe algum mimimi nessa discussão, ele vem de quem fala o que quer mas não está disposto a ouvir o que não quer

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Jão Bubiz

Homem em transição, é humorista e roteirista

Peço licença para conversar sobre um colega de profissão, Dave Chappelle. Quando a Folha me ligou e contextualizou a polêmica do último solo do humorista, confesso que já queria opinar com o fígado. Mas resolvi assistir a "Encerramento" com um olhar mais técnico.

Além da barreira da linguagem, há referências locais e polêmicas específicas dos Estados Unidos e, sendo eu um cabra nordestino, entendo que a identificação nem sempre vai acontecer de pronto.

Para quem não consome comédia stand-up: o cara é uma referência reverenciado pela classe e sua persona no palco é transgressora. A meu ver, tem uma obsessão em "bater" em todos, mas sua predileção é por criticar os brancos e seus privilégios.

NETFLIX Dave CHAPPELLE
O humorista Dave Chappelle - Rebecca Smeyne 30.set.2017/The New York Times

Dito isso, volto ao meu lugar de fala. Um homem trans humorista latino-americano sem dinheiro no bolso.
Dave Chappelle é figurinha antiga no baralho de "inimigos" da comunidade trans. Assistir a "Encerramento", seu último especial de comédia na Netflix, não foi um choque, mas uma confirmação.

O que me deixou em choque foi que um dos maiores comediantes do mundo, uma referência para quem curte o humor ácido que ele faz, está contando piadas que o meu primo Cleiton de Piracicaba poderia ter feito. Ele tem 16 anos.

Acreditei fielmente que assistiria a um especial novo e acabei surpreendido pela quantidade de piadas óbvias, como quando ele diz "esses caras vão se dar mal, mais uns drinques e os caras vão começar a pedir xota e pode ser que ela não tenha". Okay, deixa essa pra meu tio reaça de Aracaju.

O caso seguiu com as especulações da funcionária da empresa de streaming que teria sido demitida por ter dado sua opinião na rede social. Acontece que a mesma funcionária também foi readmitida logo após esclarecimentos de fato, mas a internet está tão a fim de um boicote, que custava pesquisar? Tantos canais a serem lidos, pesquisados e entendidos até chegar a uma formação de uma ideia.

A comédia é há muito tempo um espaço quase exclusivamente hétero-cis —essa expressão que já faz um pessoal virar os olhos— e, como um homem trans e comediante —posso não ter lugar de falo, mas de fala eu tenho—, eu sempre senti que a ideia nunca foi nos atrair para a piada, nos fazer rir ou querermos rir do que era contado.

Pelo contrário: a ideia, quando se bate em alguém, é espantar o sujeito. E a gente queria fazer parte. Para rir junto, a gente precisa antes aprender a rir —só rir mesmo. A real é que precisamos de mais, precisamos de trans, travestis, lésbicas, gays, do alfabeto inteiro, no palco e na plateia, sentindo-se contemplados pelo riso e não pela piada, para que em algum momento a gente tenha mais tranquilidade em rir de si mesmo.

Agora, quando Dave Chappelle conta a história de sua amiga, a comediante trans Daphne Dorman, o que poderia ser uma ótima homenagem se perde em covardia. Porque usar uma terceira pessoa —o clássico "até tenho amigos", alguém que não está mais aqui para se defender, atacar ou defender o amigo, já que Daphne se suicidou, como escudo para o próprio comportamento e como justificativa para continuar cego a qualquer tipo de equívoco que ele possa ter, é arregar. Dave Chappelle arregou e ainda botou na conta da trans. Da trans morta.

O ponto é: até que ponto uma piada "mata"? Acho que vou tentar responder: mata quando quem está fazendo acredita no que diz. Mas sabe o que não morre pelas minhas palavras? A carreira de um dos maiores comediantes do mundo por causa de pessoas trans avaliando seu especial como de mau gosto.

Ninguém cancelou Dave Chappelle. Se existe algum mimimi nessa discussão, ele vem de quem fala o que quer mas não está disposto a ouvir o que não quer. Ora, o cara falou umas groselhas e está ouvindo outras. Não é justo? No fim do dia, ele vai dormir felizão numa cama de dinheiro —feliz, inclusive, por ter causado o barulho que causou. Se o especial "Encerramento" passasse despercebido, inclusive pela comunidade LGBTQIAP+, teria sido um fracasso. O objetivo nunca foi só o aplauso.

A gente, comediante, gosta de falar sobre o proibido. Eu realmente espero que aquilo tudo seja uma piada mesmo. Porque se for a opinião pessoal do Dave Chappelle, eu sinto muito —porque já é isso que eu sinto (muito) todo dia na pele.

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