Descrição de chapéu
André Boucinhas

Dave Chappelle aposta alto com obra-prima que exige entendimento da ironia

Humorista acredita na comédia como uma forma de expressão que exige do público tolerância e conhecimento das regras

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André Boucinhas

Roteirista e historiador, colaborou com obras da Globo e do Porta dos Fundos

Nada como um especial de stand-up da Netflix para relaxar e esquecer dos problemas na sexta à noite, não é? Não, se estamos falando de Dave Chappelle.

Em menos de dez minutos no seu novo especial, "Encerramento", ele já disparou piadas sobre coronavírus, pedofilia, judeus, racismo e violência policial, avisando à plateia que "vai ficar bem pior que isso". E fica. Sua metralhadora acerta o MeToo, os gays, os republicanos, a cidade em que está e o resto do mundo. É agressivo, incômodo, irresponsável... e o melhor programa de comédia em muito tempo.

Para começar, Chappelle não cai na tentação de simplesmente agredir pessoas e movimentos. Humor de bullying é (ou era para ser) coisa de principiante. Conhecido pela insistência no tema dos transgêneros, ele argumenta: "Qualquer um de vocês que já me viu sabe que eu nunca tive problema com uma pessoa trans. Se ouvirem o que eu digo, claramente, meu problema sempre foi... com pessoas brancas".

homem com macacão verde em palco
Dave Chappelle no show 'Sticks & Stones' - Mathieu Bitton/Divulgação

Sempre que parece na defensiva, parte de novo para o ataque. A quebra de expectativa gera gargalhadas e, neste caso, explicita a chave racial por meio da qual interpreta a sociedade. Por essa lente específica e exagerada, ele aponta as incoerências que enxerga ao seu redor.

Não precisa se preocupar. "Encerramento", como qualquer um de seus shows, não busca engajar a plateia nesta ou naquela causa. Para ele, a comédia não está a serviço de uma bandeira, muito pelo contrário; a experiência de vida e os princípios do cidadão Chappelle é que estão a serviço do comediante no palco.
Sua resposta a uma mulher idosa que o acusou de odiar as mulheres diz tudo: "É arte. Você é livre para interpretar como quiser, mas posso dizer, como criador dessa arte, que não penso assim".

Quando ela tentou contra-argumentar, Chappelle conta que gritou "cala a boca, vadia, antes que mate você e jogue no porta-malas do carro, porque não tem ninguém olhando". Brincadeira, claro, pelo menos a última parte.

Entender a comédia como arte significa não ver nela apenas a função de fazer rir —algo que o som de um pum ou um tropeção conseguem—, mas lembrar que sem isso ela perde a razão de ser.

A polarização em que vivemos, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, tende a empurrar os comediantes em uma ou outra direção, mas poucos (alguém?) conseguem conciliar tão bem os dois aspectos.

Há os que decidem ignorar o cenário político e social, dando a impressão de que habitam um universo paralelo; outros adequam todo seu material a uma bandeira, praticando uma espécie de comédia para convertidos. Chappelle, não.

Em "Encerramento", ele despende bastante energia zombando o movimento LGBTQIA+, o que irrita o campo progressista, porém não perdoa os conservadores, com ataques ao ex-vice-presidente Mike Pence e trumpistas em geral.

Ele aplica, na prática, sua crença na comédia como uma forma de expressão livre, que exige do público tolerância e conhecimento das regras da ironia, elementos um pouco em falta no mercado hoje em dia.
A habilidade com que Chapelle aborda profundamente assuntos delicados e tira humor deles vale o show, mas falta mencionar o principal: é muito engraçado. Chappelle está no auge e sabe disso.

No stand-up, confiança se mostra uma vantagem brutal e ele a tem de sobra. Conduz com calma suas histórias, prepara os ganchos sutilmente e surpreende a plateia sem aparentar esforço.

Tive impressão semelhante sobre Jerry Seinfeld em seu último especial, no entanto —e me dói um pouco admitir isso— o conteúdo deixa a desejar. Como acontece frequentemente com comediantes ricos e famosos, ele foca sua família e assuntos genéricos, como celular ou correios, para se identificar com o público, uma vez que seu cotidiano não corresponde mais ao das pessoas "comuns" e não quer investir em nada polêmico.

Dave Chappelle aposta alto num caminho diferente, mais arriscado, e produz uma obra prima.
Pode ser que eu esteja exagerando, mas não estou sozinho. Recentemente, o apresentador e humorista David Letterman declarou que considera o comediante um nível acima de seus colegas. "Encerramento" confirma isso, apesar do desfile de agressões e insensibilidade. Ou seria por causa deles?

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