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Televisão

Gilberto Braga cutucou feridas da ditadura em 'Anos Rebeldes'

Mesmo pouco politizado, o escritor, morto aos 75, ajudou a Globo a brigar contra a imagem de canal dos militares

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Uma jovem militante de esquerda abre a camisa diante do pai, um banqueiro que apoiava a ditadura, e mostra os seios queimados por cigarro após ter sido presa e torturada. É de perder o fôlego essa cena de "Anos Rebeldes", com Cláudia Abreu e José Wilker, uma das mais poderosas da teledramaturgia brasileira.

Escrita por Gilberto Braga, morto aos 75 anos nesta terça, a minissérie marcou a história da TV ao ter como protagonista uma crítica mordaz ao regime militar. Foi exibida em 1992 pela emissora que, nas passeatas contra a ditadura, havia figurado em cartazes e no famoso grito "o povo não é bobo, abaixo a rede Globo".

A "TV da ditadura", aquela que havia apoiado o golpe e crescido a partir de seus incentivos, tinha também pecados mais recentes à ocasião —a tentativa de omitir as Diretas Já em sua fase inicial e a edição do último debate das eleições de 1989, feita pelo Jornal Nacional, que prejudicou Lula e favoreceu Collor.

Um parêntese se faz necessário —não foi só a Globo. As emissoras, assim como a maior parte da imprensa, se beneficiaram da política de incentivos fiscais do governo e da instalação da Embratel, que facilitou a transmissão do sinal. A televisão era vista como estratégica pelos ditadores, capaz de unificar o território e facilitar o controle político.

A Globo foi a primeira a se tornar uma rede nacional, cresceu mais do que as outras e ganhou poder sem precedentes. Sobrou para ela ser "a TV da ditadura", ainda que, mais do que as concorrentes, tenha dado espaço a críticas políticas, especialmente nas telenovelas, e sofrido pressão via censura. Se até hoje esse é um tema de discussões acaloradas, quando "Anos Rebeldes" foi ao ar, em 1992, a ferida estava ainda mais aberta.

Com a cena das marcas de tortura de Cláudia Abreu, a da morte de sua personagem, metralhada por um militar, e tantas outras, a série teve impacto nunca alcançado pelas diversas iniciativas institucionais da Globo para se reabilitar politicamente, desde tentativas de driblar os fatos e reescrever a história, passando por revisões mais equilibradas e até chegando ao reconhecimento sincero de alguns erros.

Foram o talento de Gilberto Braga e a força da teledramaturgia que combateram, de uma forma inédita, teses simplistas que embasavam o slogan "o povo não é bobo".

A repercussão de "Anos Rebeldes" teve impacto imediato. Ao retratar o movimento estudantil dos anos 1960, engajou jovens nas passeatas que defenderam o impeachment de Collor. Curiosamente, Braga não fazia parte do grupo de esquerdistas que a emissora havia abrigado ao longo da ditadura, sendo o dramaturgo comunista Dias Gomes o mais célebre deles —havia à época, no país, um domínio da arte engajada de esquerda, que teve suas intenções revolucionárias incorporadas e diluídas pela indústria cultural.

No livro "Anos Rebeldes – Os Bastidores da Criação de uma Minissérie", da editora Rocco, Braga diz que foi "totalmente alienado nos anos 1960". Teve a ideia de escrever uma obra sobre a ditadura por considerar que formaria uma trilogia com suas duas produções anteriores, "Anos Dourados", sobre a década de 1950, e a novela "Vale Tudo", um retrato do país pós-ditadura militar.

Pediu ao Boni, diretor da Globo, para trabalhar com o tema, e só conseguiu autorização, em sua avaliação, pelo fato de não ser "nada politizado". "Não acredito que desse sinal verde, por exemplo, para Dias Gomes fazer uma minissérie sobre a época", escreveu.

Enquanto o Brasil enfrentava a ditadura, Braga estava no escurinho do cinema, vendo um filme por dia —a linguagem cinematográfica se tornaria uma grande influência. Dos anos 1960, conhecia a cultura, os costumes, mas precisava entender o contexto político. Três foram suas leituras iniciais, nas quais se baseou para criar a minissérie —"O que É Isso, Companheiro?", de Fernando Gabeira, "Os Carbonários", de Alfredo Sirkis, e "1968 – O Ano que Não Terminou", de Zuenir Ventura.

Na minissérie, a política, obviamente, teria de vir embalada por uma história de amor, que foi protagonizada por Malu Mader, no papel de uma mocinha conservadora, e Cássio Gabus Mendes, jovem idealista que se engajou em movimentos de oposição.

Como apontou Artur Xexéo no prefácio do livro sobre "Anos Rebeldes", Braga foi engenhoso ao criar um triângulo amoroso em que o rapaz se divide entre o amor pela garota e o sonho da revolução. Ele manteve seu objetivo de fazer com que o público não soubesse pelo que torcer.

Ainda que tenha feito da ditadura a grande vilã, Braga era herdeiro da veia folhetinesca de Janete Clair mais do que do tom diretamente político do marido da escritora, Dias Gomes. Boni, em sua autobiografia, conta que apresentou Braga a um chef de um restaurante de Nova York como "um grande autor brasileiro", ao que ele retrucou "não sou um autor, sou simplesmente um escritor de folhetim".

Autor ou escritor de folhetim, é considerado o primeiro nome da teledramaturgia brasileira formado exclusivamente na TV —os outros vieram do rádio ou do teatro. No mesmo livro sobre a minissérie, ao escrever sobre suas influências, mencionou, além do cinema, Nelson Rodrigues e best-sellers americanos, contra os quais não tinha preconceito, "como era o caso do Dias". "Ele só elogiava Brecht, que às vezes me parece chato."

Ainda que Braga não fosse da turma politicamente engajada, não foi sem censura que escreveu "Anos Rebeldes". Roberto Marinho determinou que suavizasse episódios que retratavam o momento do AI-5.

No livro, confessou que, apesar do alarde na imprensa, as restrições foram pouco significativas e em menor quantidade do que ele próprio afirmou à época. "Devemos ter reescrito algo como dois capítulos e dito que reescrevemos cinco", contou. "É preciso saber lidar com o poder."

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