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Televisão

Gilberto Braga e suas novelas fizeram o Brasil se encarar no espelho

É em suas novelas que ouviríamos falar do preço do aluguel e do agiota cobrando juros imensos

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Thiago Stivaletti

Se a novela é um gênero ligado ao melodrama burguês, ao menos um autor, Gilberto Braga, foi capaz de ligar esse gênero à realidade brasileira de cada época.

Gilberto Braga estreou na Globo em 1972 fazendo adaptações literárias para o programa "Caso Especial", pelas mãos dos dramaturgos Domingos Oliveira e Oduvaldo Vianna Filho. Vinha de uma pequena carreira como crítico no jornal O Globo e professor de francês, mas sentia que tinha mão para a ficção.

Logo passou para as novelas, fazendo duas adaptações curtas –"Senhora", de José de Alencar, e "Helena", de Machado de Assis.

O que nem ele nem ninguém na Globo poderiam imaginar é que, em 1976, sua adaptação seguinte —"A Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães—, uma sugestão sua para o diretor Herval Rossano, se tornaria o maior sucesso da história da emissora.

O próprio Gilberto encontrou a chave do sucesso. "As pessoas acham que o sentimento mais forte do ser humano é o amor. Não é. É o medo. Esse é o melhor storyline possível –nós todos temos medo de quem é mais forte que nós."

A aposta se mostrou certeira. O medo que Isaura tinha de seu dono Leôncio ultrapassou qualquer fronteira social e política, e a trama foi exibida em mais de cem países, de Cuba à China —e segue sendo reprisada até hoje pelo mundo.

Em sua novela seguinte, "Dona Xepa", de 1977, outro grande sucesso, Gilberto começa a treinar o seu olhar para as questões do cotidiano –a vida apertada da protagonista feirante, as contas na ponta do lápis, as dificuldades econômicas de uma classe média baixa sempre na corda bamba.

É nas novelas de Gilberto que sempre ouviríamos falar do preço do aluguel, do agiota cobrando juros imensos por uma pequena dívida, de um financiamento pago em prestações suadas.

Esses dois sucessos seguidos o credenciariam a passar rápido ao horário nobre da Globo, às oito da noite, com "Dancin’Days", de 1978. É aí que ele consagra sua melhor fórmula –uma história de melodrama tradicional embalada em temas e cenários conectados ao Brasil do momento.

O melodrama –uma mulher que sai da cadeia e disputa sua própria filha com a irmã rica. O tema do momento, proposto por Boni e Daniel Filho —a era das discotecas que tomavam Rio de Janeiro e São Paulo e ecoavam o sucesso, um ano antes, do filme "Os Embalos de Sábado à Noite", com John Travolta.

O coquetel de drama clássico e conservador com um verniz moderno encanta o público. E desde aí o espectador mais intelectualizado já se diverte com as mil referências do cinema americano que Gilberto põe na boca de seus personagens.

É a partir dessa época que, autor badalado, ele começa a ser convidado para as festas e badalações da alta sociedade carioca e vai afiando a sua lente sobre essa classe dominante. Suas novelas serão sempre povoadas de "grã-finas" com todo tipo de excentricidade, como Stella Simpson, papel de Tonia Carrero em "Água Viva", de 1980, ou a cafetina Olga Portella, de "O Dono do Mundo", de 1991. E também das mulheres de classe média que fariam de tudo para frequentar as altas rodas. Ele vai se tornando uma espécie de Balzac da TV, botando uma lupa diária sobre a sociedade carioca em suas histórias.

Mas nada preparava para o salto dramatúrgico que ele daria em "Vale Tudo", de 1988, provavelmente a melhor novela já escrita. A trama principal era inspirada num romance clássico americano —"Mildred Pierce", de James M. Cain—, trama que também rendeu um filme estrelado por Joan Crawford em 1945.

Tratava da rivalidade de uma filha contra sua mãe —a primeira mau-caráter, a segunda honesta e trabalhadora, que se torna uma pequena empresária do ramo da comida. Mas o tema do momento no Brasil era a famosa "lei de Gerson", segundo a qual o brasileiro quer sempre levar vantagem em tudo.

"Vale Tudo" juntava uma jovem vilã inescrupulosa, Maria de Fátima, papel de Glória Pires, com uma empresária que em tudo representava a ganância das elites brasileiras, dispostas a explorar muito e não dar nada em troca ao país, a Odete Roitman de Beatriz Segall.

A novela já era um sucesso quando Gilberto decidiu assassinar Odete a poucos capítulos do final da trama e parar o Brasil com esse suspense —numa época em que mesmo as elites só tinham a TV aberta para assistir. Com a audiência em disparada, ele consegue manter a dura mensagem até o final.

Enquanto um dos mocinhos, Ivan, papel de Antônio Fagundes, ia para cadeia por um ato de suborno cometido sob pressão, Maria de Fátima, em vez de ser punida, terminava a novela rica e sem remorsos. Era um soco no estômago para o telespectador —mas o Brasil recém-entrado na democracia parecia disposto a se encarar no espelho.

Para além das novelas, porém, Gilberto Braga tinha muito orgulho de duas minisséries que se tornaram os retratos definitivos da época em que se passavam –"Anos Dourados", de 1986, sobre os conservadores anos 1950, e "Anos Rebeldes", de 1992, sobre os turbulentos anos 1960.

A primeira se inspirava no filme "Clamor do Sexo" para mostrar a repressão sexual dos jovens em meio a famílias extremamente conservadoras, abordando temas como a perda da virgindade. A segunda retratou não só a militância jovem como a participação da classe empresarial na manutenção da ditadura —e teve o mérito de impulsionar a ida dos jovens caras-pintadas às ruas naquele ano para protestar contra o então presidente Fernando Collor.

Talvez seu último momento de brilho tenha sido na novela "Celebridade", de 2003, em que fazia um retrato irônico da nova era dos famosos —já antecipando a atual ditadura das redes sociais.

Como acontece muito na televisão, Gilberto saiu de cena com um fracasso de crítica e audiência, a novela "Babilônia", de 2015 —que trazia, entre outros, um casal de lésbicas da terceira idade, num momento em que o Brasil já ensaiava sua guinada ultraconservadora. Mas não importa. O tom político de suas obras maiores fica como lição para novos autores.

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