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Gilberto Braga retratou o jeitinho e a desesperança brasileira por décadas

Enredos de novelas retrataram corrupção e moralismo de um Brasil que parece não ter mudado ao longo dos anos

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Interessado nas perversidades e limites que desenham o comportamento humano, Gilberto Braga ocupou espaço nas conversas de sua imensa plateia sem depender de retuítes. Na era da pré-história da internet, a viralização de seus enredos se consumava pela atemporalidade. E, quando o mundo passou a disputar atenção do espectador por meio de tantas telas, aqueles personagens criados em outros tempos ganharam voz como se tivessem nascido ontem.

Revisitada pelo Viva em 2010, quando o canal foi inaugurado na TV paga, e novamente em 2018, "Vale Tudo", de 1988, alcançou eco nas redes sociais e gerou perfis que até hoje fazem sucesso no Twitter, como o @mordomoEugênio, personagem de Sérgio Mamberti, e vários perfis inspirados pela malvada favorita das novelas, Odete Roitman, papel de Beatriz Segall.

A repercussão do folhetim atingiu uma geração que não conhecia a história criada a partir de uma premissa de Gilberto e escrita com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. "Vale a pena ser honesto no Brasil?", questionava a sinopse. A sobrevivência do dilema, ainda hoje, é uma celebração para a arte da dramaturgia e uma lástima para a história do país.

Nem por isso as criações de Braga estão calçadas pelo pessimismo, ao contrário. A contemporaneidade da obra do autor de telenovelas mais famoso desde Janete Clair é o que faz de seus títulos uma lista de clássicos.

A exposição trazida por ele sobre a impunidade de uma corrupção incrustada no jeito brasileiro de ser, costurada pela trilogia de "Vale Tudo", "O Dono do Mundo", de 1991, e "Pátria Minha", de 1994, haveria de demonstrar, anos mais tarde, uma esperança de país que, de novo, não daria certo, contrariando as crenças do dramaturgo e de boa parte de seus espectadores.

Em 1989, o empresário Marco Aurélio, papel de Reginaldo Faria, autor de tantas infrações de toda ordem, fugia do risco de ser preso ao decolar em seu jatinho particular com a família. Enquanto cruzava os braços repetidamente no gestual de "dar uma banana" ao país, a câmera mostrava o cartão-postal da baía de Guanabara, em sequência sonorizada pelos versos de Cazuza na voz de Gal Costa —"Brasil, mostra a tua cara [...]/ Brasil, qual é o teu negócio, o nome do teu sócio, confia em mim".

Em solo, os empregados de baixo clero de Marco Aurélio eram algemados e levados a chiqueirinhos de camburões.

Corta. Mais de 20 anos depois, Horácio Cortez, o empresário vivido por Herson Capri em "Insensato Coração", de 2011, novela que Braga escreveu com Ricardo Linhares, tenta repetir a cena de Marco Aurélio, mas é algemado assim que dá sua banana no cruzar de braços, já dentro do jatinho. O avião, dessa vez, não decola. "O Brasil não aceita mais a impunidade de 20 anos atrás", justificou o autor, feliz, ao se referir à cena de "Vale Tudo".

Entre uma novela e outra, o Brasil elegeria quatro presidentes e ejetaria um da cadeira, ato corroborado pelos caras-pintadas que foram às ruas contra Fernando Collor, cantando "Alegria Alegria". A trilha era inspirada pela minissérie "Anos Rebeldes", de 1992, do autor, que pela primeira vez levava à tela da Globo uma obra de ficção sobre o período da ditadura militar brasileira.

Corta. Já em 2018, quando questionado sobre o sucesso que "Vale Tudo" tinha feito no Viva em 2010, a ponto de ter uma nova reprise celebrada naquela ocasião, Braga foi lacônico. "O Brasil não mudou nada desde 1989."

O impeachment de Collor em 1992, na vida real, e a prisão de Horácio em 2011, na ficção, pareciam indicar novos caminhos, mas isso não se confirmou como ele imaginou.

Em 2015, com sua última novela, "Babilônia", escrita com Linhares e João Ximenes, Braga voltaria a caprichar na corrupção sistêmica por meio de escândalos no mundo da construção civil. O cenário do folhetim vinha muito a calhar para o noticiário da época, ocupado por delações sem fim que envolviam políticos de altos postos e as maiores empreiteiras do país.

O enredo, no entanto, passou longe da repercussão dos anteriores, sendo ofuscado pela discussão moral sobre o par lésbico formado por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, aliás, duas personagens da maior honestidade. Ou seja, muita gente ia às ruas para gritar contra a corrupção, mas estava mais atenta aos valores da dita família tradicional brasileira.

A resistência à abordagem sobre orientação sexual se uniu ao discurso persuasivo e maniqueísta de Moisés, que no mesmo horário mostrava "Os Dez Mandamentos", novela bíblica de grande audiência para a Record. Igrejas evangélicas chegaram a promover campanha de boicote a "Babilônia" nas redes sociais.

A direção da Globo na época reformou os rumos de "Babilônia" para recuar na reflexão de questões de comportamento e atender aos conservadores, o que representou um retrocesso também da ousadia que marca a obra do autor.

A TV que ditou moda no passado pelas meias lurex de Sônia Braga em "Dancin’Days" hoje mais obedece do que manda. Agora, que os chefes da Globo não venham dizer que Gilberto Braga fará falta. Falta faz alguma ousadia. Braga teve pelo menos três projetos engavetados pela emissora nos últimos sete anos de sua vida.

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